Segunda-feira, 01.03.21

DOUTOR LUÍS MACHADO LUCIANO

O Doutor Luciano deixou-nos.

Em Setúbal, onde exerceu medicina e cirurgia, a consternação foi grande.

Chorado por familiares, amigos, muitos, e os meios de comunicação social  dispensaram-lhe generosos espaços.

Contudo, os que com ele privámos nos distantes anos de 62 em Angola, arrastados lá para o norte,  muito próximo da fronteira, não podemos deixar de lhe conceder uma palavra de gratidão pela sua presença serena junto de nós, partilhando as nossas dores e incertezas.

Connosco chorou os primeiros mortos e, numa tentativa de aliviar o stresse que nos acometia, organizou actividades físicas e esteve semre disponível para ouvir o desabafo de qualquer um  pois que tratava todos por igual.

No momento mais grave que tivemos -- princípio de subvelevação dos militares -- foi ele que, sernamente arriscando a própria vida, dialogou com os sublevados e aplacou os ânimos. Dispersaram calmamente para alivio de todos.

Ficou um vazio quando nos deixou e repetimos agora o que então dissemos.

"Obrigado, Doutor Luciano.Até sempre"  

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Domingo, 12.07.20

ESTIVE LÁ

 Estive lá

 

  Fui um dos que tiveram a felicidade de voltar      Outros ficaram, jazendo.

 

  Tive um início de serviço militar normal.

  Incorporado em  Abril de 1959, frequentei o CSM em Mafra, fazendo especialização em transmissões de infantaria, credenciado para a chefia de um centro cripto. Passei à disponibilidade em Março de 1961.

  Liberto da obrigação militar, casei e organizei a viva. Mas a vida organizada durou pouco.

  Chamado de novo às fileiras, foi-me ordenada a frequência do “Curso de Caçadores Especiais” no Centro de Instrução de Operações Especiais (CIOE) em Lamego, de 17 de Julho a 2 de Agosto de 61 e posteriormente integrado no Batalhão de Caçadores Especiais nº357, na especialidade de transmissões da Companhia de Caçadores Especiais nº306, com destino a Angola, onde a situação era efervescente.

  Desembarquei em Luanda em 12 de Maio e no desfile feito na “Marginal”, o Batalhão foi recebido com flores lançadas das janelas dos edifícios. Éramos um acréscimo de segurança aos que temiam novas investidas dos “terroristas”.

  Recebidas viaturas, jipes e Unimogs novos e GMCs em bom estado, numa longa e extenuante marcha de 1035 quilómetros, atingimos o local indicado para o nosso estacionamento em 18 de Junho de 62.   Próximos da fronteira com o ex-Congo Belga, em pleno teatro de guerra,  construímos de raiz, com materiais recolhidos em sanzalas próximas ─ abandonadas─ o nosso estacionamento, baptizado Pangala, base das missões atribuídas: cortar linhas de movimentação  do IN ( o inimigo) e ocupação territorial.

  Sofremos o horror das minas que causaram  mortes ─ quatro─ e feridos graves evacuados.

  Morremos muitas vezes na incerteza do dia seguinte.

  Matámos na ânsia da retaliação, com o eco do grito de revolta de um corajoso missionário contra a exploração dos índios afirmando-os os verdadeiros senhores das suas terras e que “a nenhum título, nem o Papa nem o Rei de Espanha os podem privar desse direito!”

Talvez aqueles “terroristas”  sejam os verdadeiros senhores das suas terras e nem o Papa, nem o “rei” de Portugal, nem nós os possamos privar desse direito.

 

  Privações de água, de alimentos confeccionados e carências múltiplas assoberbaram-nos. Durante doze meses enfrentámos ainda as agruras de um clima pouco favorável em terreno desconhecido.

 Era a guerra.

 

  Na minha qualidade de responsável pelas comunicações rádio acresciam as queixas dos operacionais que, de noite, se viam  impossibilitados de usar os rádios distribuídos e, não raras vezes descarregavam em mim a sua frustração. Sucedia que nos tinham sido atribuídos emissores/receptores inapropriados. Funcionando em AM (amplitude modulada) e com reduzida potência, eram incapazes de vencer a estática que surgia com o pôr do sol. As operações nocturnas apeadas, desde o pôr ao nascer do sol, ficavam sem comunicações com a base. A despeito dessa certeza, sempre que havia uma acção nocturna, na “base” ─ a Companhia ─ havia uma escuta permanente tentando ouvir uma voz entre aqueles milhares de grilos em loucos desafios.

  Naquele tempo havia um único emissor/receptor capaz. Montado em viatura ou em estação o ANGRC-9, posteriormente dotado de um amplificador de sinal, cumpria a sua missão. Mas este aparelho dificilmente podia ser usado em patrulhas apeadas: eram necessários pelo menos dois militares para o transportarem, demorava muito tempo a ser preparado para operar e a sua utilização era penosa.

  Pesava ainda sobre mim o secretismo do conteúdo das mensagens recebidas que o operador cripto descodificava, eu conferia e assinava.

 

  Doze meses depois, trilhando o mesmo caminho, regressámos a Luanda onde ficámos “em prontidão” e guarnecendo pontos sensíveis da cidade.

  Deslocados posteriormente para o sul do rio Quanza, com a missão de zelar pela segurança das instalações petrolíferas de Cabo Ledo, com um pelotão deslocado na Muxima, em plena reserva de caça da Kissama, tivemos o merecido “Repouso do Guerreiro”.

  A 22 de Junho de 64, o Vera Cruz carregou-nos para a Metrópole com a tristeza de termos deixado para sempre quatro amigos no cemitério de S. Salvador do Congo.

   Mas a guerra não ficou lá: noites insones sob cacimbo cerrado,  tensão de uma deslocação em viatura num terreno possivelmente minado, sede mitigada com água suspeita, rações de combate odiadas, a dor raivosa de perder amigos, o desejo de retaliação, a incerteza do dia seguinte e de estarmos a fazer “o devido”, as recordações tenebrosas da guerra vieram connosco.

  Só o tempo vai limando esses “danos colaterais”.

 

  1. Eduardo Tendeiro ( in Combatente da Estrela nº 113, DEZ18)
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COISAS DA GUERRA

COISAS DA GUERRA 

 

Entrou de mansinho no quarto.

Frente à janela, a filha, debruçada sobre o papel de carta, permanecia estática

─ Vim só ver o menino. Está sossegado, não está? ─ Sem aguardar resposta, quis confirmar ─ Estás a escrever-lhe?

─ Estou… ─ Levantando os olhos chorosos para a mãe, confirmou ─  Estou para aqui a inventar um rol de mentiras!

─ Então, filha! Tempos melhores virão. O menino há de curar-se e ele, com a graça de Deus e de Nossa Senhora, vai voltar sem mazelas daquela maldita guerra.

─ Mas eu já nem sei que mais inventar! Doí-me a alma dizer-lhe que o nosso filho, aquele anjinho ali, está bem quando esta semana já fomos a correr com ele para o hospital duas vezes … ─ num gesto maternal a senhora mais velha abraçou os ombros da filha sem encontrar uma palavra de conforto ─ … como é que eu posso dizer-lhe que na fábrica as coisas vão mal, já despediram gente e eu estou à bica para novos despedimentos. Ó mãe, que vida a nossa!

─ Então filha! Tudo se vai consertar. Do menino ─ estacou, mirou longamente a filha e argumentou ─ até já me lembrou de o levar à senhora Assunção…

─ Mãe! ─ a indignação reverberou no ar ─ Não vais levar o nosso menino à bruxa!

─ A senhora Assunção não é bruxa nenhuma. Ela vai à missa e até o senhor prior lhe fala bem!

─ Isso não, mãe!

─ Escreve lá ao teu José e depois falamos.

─ Ao cabo dezanove, corrigiu com um breve e pálido sorriso, logo repreendida pela mãe:

─ Não chames isso ao rapaz. Tem nome, um bonito nome o de S. José, Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo.

─ Mas é isso que ele diz que o chamam lá na guerra!

─ Deixa lá. Escreve-lhe. Escreve que o menino teve uma dorzita de barriga mas já vai bem. Não lhe fales na fábrica.─ Confrangida, saiu de mansinho com um breve olhar para a criança cuja palidez rivalizava com a alvura dos lençóis do berço.

 

 

-------XXX-------

 

 

─ O dezanove em meditação! ─ Casquinou o sargento Alves ao deparar com o cabo que, carrancudo, enfrentava uma folha de papel em branco.

─ Não goze, meu sargento! Estou para aqui a ver se invento boas notícias para mandar à minha Maria, sempre desejosa de notícias  minhas. Ela manda cartas tão bonitas! Conta as gracinhas do nosso filho e diz-me coisas lá da terra…

─ Desculpa lá! É chato, pá! Não lhe podes dizer que esta semana morreram mais três dos nossos e que estivemos uns dias a arroz com as conservas das rações de combate. Inventa aí qualquer coisa alegre…

─ Mas o quê? ─ Gemeu o dezanove.

─ Sei lá, pá… Olha! Conta-lhe que houve uma patrulha de caça. Saíram à caça para arranjar carne para o arroz, mas não lhe digas que não caçaram nada. Inventa que abateram veados e um porco. Diz-lhe que também foste e até acertaste num dos bichos…

─ Isso não, que ela é muito dorida com os animais.

─ Então inventa aí a festa que todos faríamos se a caçada tivesse dado resultado. ─ Sem transição, o Alves  inquiriu ─ Viste por aí o quarteleiro?

Face à negação do questionado afastou-se mas voltou atrás:

─ Olha, diz-lhe que tivemos cá o padre a dizer missa, mas não podes dizer que foi pela alma dos mortos, e que depois jogámos uma futebolada com ele a fazer de árbitro. ─ Contente com a sua achega, acrescentou ainda ─ Se queres fazê-la rir diz-lhe que passaste horas a coser dois botões… elas riem-se a valer com a nossa falta de habilidade para essas coisas da costura…

Cofiando a barba de muitos dias, deixou um último conselho ao outro:

─ Se fosse a ti guardava essa dos botões para outra carta.

Afastou-se em demanda do quarteleiro, contente com as suas sugestões.

 

Laboriosamente a escrita do cabo dezanove progrediu seguindo o conselho do sargento.

A Maria ia gostar de  ler aquela carta.

 

( In  Combatente da Estrela  nº 115)

 

 

  1. Eduardo Tendeiro

 

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O FUTURO É A PARTIR DE AMANHÃ

O futuro é a partir de amanhã

 

─ Que estás para aí a pensar?...

─ No futuro.

─ O futuro é só a partir de amanhã…

─ Teremos amanhã?

            ---------00----------

  1. 3 de Julho de 1962

(Micro narrativa in

Pangalacity.blogs.sapo.pt )

publicado por gatobranco às 14:42 | link do post | comentar
Domingo, 08.12.19

REQUIEM

 

 

 

Conhecemo-nos em Mafra franqueando as portas da EPI (Escola Prática de Infantaria) em Abril de 1959.

Aí sofremos o que, diziam, faria de nós homens.

Mais tarde, com abraços de “até sempre” fomos colocados em diversas Unidades Militares espalhadas pelo país.

Mas a dispersão não durou muito.

Em Julho de 61 reuniram-nos de novo convocados para serviço militar extraordinário e mandados apresentar no Centro de Instrução de Operações Especiais (CIOE) de Lamego onde fizeram de nós Caçadores Especiais com destino à guerra de Angola.

Lá suportámos fadigas, sofrimentos, agruras de uma guerra que não queríamos e tu, MARQUES ALVES, carregaste o ónus de ver morrer inimigos mas também amigos.

Sereno, pouco dado a exteriorizações mas amigo fiel, foste um dos muitos que sobrevivemos.

No aconchego do teu Monte alentejano que tanto prezavas, tiveste a felicidade de, frequentemente, disfrutares a reunião da família.

 Nos nossos encontros de “depois da guerra” estiveste sempre connosco.

Nesta hora de despedida, embora distante, sou eu que num até breve te digo “Estou contigo” e peço que   supliques  por nós ao Pai que te recebeu.

Descansa em Paz.

Vinte e oito de Novembro de dois mil e dezanove.

  1. Eduardo Tendeiro
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Domingo, 01.09.19

ATÉ SEMPRE, CURA DOS SANTOS

 

              

ACS.png

 

            

Deixaste-nos e com a tua ausência ficamos mais pobres.Mas não abalaste sem luta, como sempre fizeste.

 Quantas vezes, com um meio sorriso, enfrentaste a morte naquelas viagens  das colunas de reabastecimento trilhando picadas minadas, sempre com uma palavra de conforto para os mais temerosos!

Nas nossas reuniões, mesmo quando a saúde já não era a melhor, em ti buscávamos a alegria de uma confraternização e contavas um pequeno episódio que superava a tristeza de amigos já em falta.

Lá longe, nos tempos de Pangala, nos nossos momentos de reflexão, quando dúvidas nos assaltavam, lá estava o teu sorriso a garantir que “tudo vai correr bem.”

Deixaste-nos, mas fica a saudade imensa da tua presença, de ti.

Descansa em paz aguardando por nós.

1AGO19

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Sexta-feira, 16.08.19

...

 

 

 

                              

 

 

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Segunda-feira, 01.07.19

Dias um e dois de Julho de 62

Dias negros, inesquecíveis da nossa juventude truncada -- um e dois de Julho de 1962.

Lá longe, muito longe, por onde nunca tínhamos presumido que andaríamos, o sacrifício do Monteirinho, do Barriguinha, do Carvalho e do nosso tão querido David, deu-nos a medida daquele momento: era a guerra.

Guerra que não conhecíamos, que não tínhamos experienciado ainda e que não queríamos.

Descansam em paz inscritos no memorial dos combatentes da guerra do ultramar e, para sempre, na nossa memória.

J. Eduardo Tendeiro

                                   ---oo---

        "Por quem nem os sinos dobraram" 

                        A. Ribau Teixeira

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Sexta-feira, 28.06.19

SONHAR...IMAGINAR

SONHAR, IMAGINAR

com bola.jpg

   Deliciado, via o filho correr atrás da bola.

   Equilíbrio incipiente, pernas arqueadas pelo volume da fralda, ele corria com um riso de prazer. Quando conseguia apanhar a bola apertava-a contra o peito e com gritinhos de alegria, corria para o pai e entregava-lha aguardando o recomeço da brincadeira.

   A mãe, discreta, sorria,  os olhos húmidos lutando contra a ruga de preocupação que lhe vincava a testa. Só já faltavam doze dias para ele abalar de novo! Depois seriam mais dez meses de pesadelo, de ânsias por uma carta.

   Ele sabia e evitava olhá-la concentrando-se no filho que incansável, não deixava de perseguir a bola. Animando-se a si próprio, esforçando-se por pôr convicção no pensamento ruminava que dez meses iam passar e depois seria a felicidade plena libertos da guerra que os separara poucos meses após o casamento. Teriam uma vida pela frente para se reverem na felicidade do seu amor. Teriam mais filhos, haviam de ter, pelo menos mais dois. Ela hesitava, talvez só mais um, mas com um encolher de ombros, adiava :

   ─ Depois logo vemos…

   À sua frente o bebé requeria  atenção oferecendo-lhe a bola. Num gesto de ternura puxou-o para si e abraçados tombaram sobre a manta que forrava o canto do terraço.

       ______XX_____

   ─ Dormiste mal ou isso é só sorna? – Especado à sua frente o Nicolau empurrava-o com o joelho fazendo oscilar o banco em que se deitara.

   Abriu os olhos e, consternado, retrucou:

   ─ Não estava a dormir… pensava, imaginava, revia momentos de felicidade havidos e projectava-os no futuro…

   ─ Futuro… -- cortou o outro desdenhoso – grande futuro que nos espera…

   Contrariando-o, o que sonhava felicidade, insurgiu-se:

  ─ Não basta viver a vida, particularmente quando se trata da merda de vida que temos. É preciso sonhá-la para não darmos em doidos.

   -─ Tu lá sabes… Chega para lá.

   Sentados lado a lado no tosco banco aninhado na sombra que decrescia, fumaram em silêncio.

   Por fim, o que chegara, quis saber:

   ─ O que estavas a sonhar?

   A resposta tardou, cheia de reticências:

   ─ Era mais um imaginar que sonhar…

   ─Já sei… sonhavas com o filho…

   O movimento pendular da cabeça do questionado anunciou o longo silêncio que caiu entre os dois.

   - Casado e com um filho, esta porra torna-se bem pior… Se calhar fazes bem em sonhar…

   ─ E tu não sonhas, não imaginas o futuro fora deste inferno?

   ─ Para já, só penso na emboscada desta noite. Logo à tarde vou mentalizar os rapazes, verificar equipamentos… só água e balas, nada de tabaco… mas olha, também sonho com uma coisa…

   ─ Uma” zona de morte”[i] cheia deles? – interrompeu mordaz o dos sonhos.

   Levantando-se e sacudindo os calções coçados – gesto inútil – contemplou o amigo e contrapôs:

   ─ Não, pelo contrário: uma zona de morte vazia… vazia o tempo todo ─ Insistiu

   Abalou sisudo.

 

 

[i]  Zona de morte: Espaço físico em que se concentra o maior poder de fogo numa emboscada e onde é previsível que o IN sofra o maior número de baixas.

publicado por gatobranco às 11:48 | link do post | comentar
Domingo, 23.06.19

O ESCORPIÃO

 

 

 

O ESCORPIÃO

 

10_escorpiao-picada.jpg

  Naqueles dias de Pangala – lá muito ao Norte de Angola,  perto da fronteira –  o tédio adensava-se sobre os militares ali estacionados.

 Patrulhas, escoltas, emboscadas (quase sempre inconsequentes)  e serviços de apoio ao estacionamento eram uma rotina que, em vez de serem dispersivos, contribuíam para adensar aquela sensação claustrofóbica que pesava sobre eles.

   Nesse tempo tudo servia de entretém, qualquer coisa inusitada era recebida com agrado e naquele já muito distante dia, aconteceu.

   Para os lados da cozinha, numa ponta do estacionamento, gerou-se um movimento inesperado que fez convergir para ali alguns militares.

   O tenente do segundo pelotão e o sargento das transmissões cruzaram-se , arrastando-se no lodo do seu tédio, vislumbraram o alvoroço e interrogaram-se sobre o que seria aquilo.

   Especado, testa enrugada, cofiando a barba áspera de alguns dias, o sargento encolheu os ombros em sinal de ignorância e o oficial secundou-o com um trejeito de lábios.

   Intrigados ficaram-se os dois a mirar o ajuntamento de meia dúzia de militares dos quais se destacou um que, em passo apressado se aproximou.

   Intersectado pelo tenente, o militar urgiu que tinham apanhado uma  alacrária[i] das grandes, que até tinha pelo nas patas e o sargento ironizou que ele estava a fugir com medo,

    Escandalizado, o interpelado  profetizou que se fosse só ele, já a tinha esborrachado com a bota, mas os outros queriam experimentar uma coisa…

   Face à curiosidade do oficial explicou que alguns estavam a dizer que as alacrárias, quando rodeadas pelo fogo  espetam o ferrão nelas  e queriam  experimentar. Entusiasmado informou que ia à enfermaria arranjar um bocado de algodão e álcool para fazer uma cerca e depois pegar-lhe fogo…

    Ironizando de novo, o das transmissões ironizou  que a lacrária estaria muito sossegadinha à espera que lhe fizessem o cerco de fogo para se suicidar. Sorrindo com ar superior o que deixara o grupo garantiu que ela não poderia escapar porque estava dentro de uma panela grande e  com esta informação apressou-se a caminho da enfermaria.

  E o comandante do segundo pelotão latinou:”Requiem para  scorpio/scorpionis.”

   Entreolhando-se, com novo encolher de ombros, decidiram assistir ao anunciado suicídio do aracnídeo.

   No fundo de uma grande panela, o escorpião tentava trepar a parede lisa do metal e um dos espectadores com um pau, enfurecia o animal para gáudio da assistência.

   Já o que fora buscar os instrumentos de tortura – o álcool e o algodão – se encaminhava para o grupo quando o cabo cozinheiro se aproximou e descarregou a sua ira querendo saber que merda era aquela, ali nos seus domínios.

   Brandindo o cutelo da cozinha, com um pontapé virou a panela e enquanto todos fugiam , cortou o lacrau em dois.

   Encarando os algozes do aracnídeo, vociferava que ia ficar com a panela empeçonhada e que eles é que teriam de  a esfregar…

   Vendo que o grupo se dispersava, socorreu-se do tenente para não os deixar fugir e fazê-los cumprir a limpeza da panela.

   Mas o oficial, arrastando o companheiro pelo braço, mastigando um sorriso, escusou-se assegurando que não estava de serviço e que não era nada com ele. Que fosse ao oficial de dia

   O que tinha ido buscar o álcool e o algodão, sorrateiro, arrepiou caminho de regresso à enfermaria.

FIM 

 

 

 

[i] Alacrária – Expressão popular para designar o lacrau ou escorpião.

 Lacrária  -  O mesmo que lacrau ou escorpião. Registado no dicionário electrónico de Cândido de Figueiredo

publicado por gatobranco às 12:10 | link do post | comentar

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