S T R E S S

 

 
 
Teve dificuldade em acertar com a chave na ranhura da fechadura, abriu a porta desabrida, fechou-a com estrondo e encarou a anciã que a olhava desgostosa segurando ao colo uma criança de tenra idade.
- Então, querida? -- Murmurou a senhora a medo.
A jovem, esquálida, macilenta, rosto cadavérico onde só os olhos brilhavam inquietos, respondeu enfurecida:
- Então? Então, o quê? Como se não soubesse! Sempre a mesma coisa… Válium para a frente, em doses cada vez mais fortes. Qualquer dia já nem me posso mexer. Sou para aqui uma morta – viva sem forças para nada! No autocarro, com as mãos a tremerem, nem encontrava as moedas. Caiu-me tudo das mãos… toda a gente gozou comigo…Ah! Se eu pudesse conduzir! – Enterrou os dedos no cabelo descuidado, puxou-o violentamente como se pretendesse arrancá-lo e prosseguiu – sabe a melhor, mãe? Quer saber? O médico queria internar-me, pôr-me a dormir uma semana! Como se eu pudesse! E a vida, quem a faz!?...
A velha senhora, com olhos marejados, embalando a criança que apertava ao peito, interrompeu-a:
- Então, filha! Se o senhor doutor diz que o melhor é internar-te, deves aceitar! Ele só quer o teu bem, sabes que é nosso amigo… eu tomo conta da menina, faço a lida da casa…
-Nunca, eu não estou maluca, os malucos é que se põem a dormir. Não estou maluca, ouviu? — Terminou num grito de histeria que reverberou nas paredes da sala e assustou a criança que começou a chorar.
- Cale-me essa criança! Já nem a posso ouvir!
Endurecendo a voz e fuzilando-a com os olhos, a visada admoestou-a:
- Estás a ultrapassar os limites. É tua filha, não tem culpa de ter vindo ao mundo, não a podes culpar de nada! Sai daqui, vai lá para dentro, toma um comprimido, vê se dormes, pobre de ti!
Encaminhou-se para o quarto resmungando “Um comprimido, pois um comprimido para ficar ainda mais aparvalhada…”
Estendida de borco sobre a cama, encarou a fotografia de um jovem que lhe sorria. Puxou-a para si, apertou-a ao peito e chorou.
Sentada na cama, continuou a embalar a moldura com a fotografia. Largou-a e viu-a resvalar para o tapete. Debruçada, invectivou a imagem emoldurada:
- Trinta e quatro dias, contados um a um… e nem uma palavra! Por quê? Por quê! Morreste?... Tu prometeste!...
Levantou-se num repente quase pisando a moldura e dirigiu-se para uma pequena mesa rente à parede. Pegou num frasco de comprimidos e com ele apertado na mão, os nós dos dedos brancos do esforço, encarando o espelho, argumentou:
- Querem-me a dormir, é? Pois faço-vos a vontade! – Despejou alguns comprimidos na palma da mão, juntou-lhe mais uns poucos e, encarando a imagem do espelho, continuou – pois vou dormir, muito!...
Com a mão cheia de comprimidos rente aos lábios, um olhar triste, procurou a fotografia tombada no tapete e mirou-a longamente.
Num repente, atirou a mão cheia de comprimidos contra a parede e ajoelhada no chão recuperou a fotografia que apertou contra o peito com um grito lancinante:
--Maldita guerra! Maldita! Maldita…
 
J. Eduardo Tendeiro JAN70 (revisto em DEZ de 09)
publicado por gatobranco às 19:31 | link do post