A ENCOMENDA MISTERIOSA (Relato de J. Eduardo Tendeiro)
A ENCOMENDA MISTERIOSA
Era um dia como qualquer outro dentro da rotina que se estabelecera desde a nossa chegada a Luanda, vindos do Norte, depois de virarmos costas a Pangala –Pangalacity, como lhe chamávamos.
Nesse dia havia um pelotão de serviço à rede – nada de matar ninguém – e o resto da Companhia 306 vegetava no Grafanil.
Chegámos cedo, como habitualmente, sem nada de especial que fazer. Na secção auto havia trabalhos em curso e, nas transmissões preparava-se um unimog para uma escolta dentro de dois dias. Participei nos trabalhos garantindo que queria tudo pronto na véspera para afinar frequências e proceder a experiências operacionais. Tinha uma boa equipa: cifrador, rádiotelegrafistas e telefonistas, quando necessário, davam o seu melhor.
Perto das onze, já com o ANGRC9 afivelado no seu berço e com o suporte da antena em vias de fixação à blindagem do carro, o Açoreano passou e segredou-me:
- Chegou correio; o Resende ficou a separá-lo para distribuição ao almoço.
O Resende era um sargento do quadro, adstrito a um pelotão operacional, mas um auto promovido ajudante do primeiro sargento da secretaria e quem o quisesse encontrar era lá. Tinha uma boa relação connosco, milicianos, que lhe aturávamos os relatos de feitos que todos sabíamos exagerados.
Deixei as afinações para a parte da tarde e demandei a secretaria na esperança de conseguir por antecipação o correio que, tinha a certeza, me contemplava. Cheguei ao mesmo tempo que o capitão Sampaio, perguntei ao Resende se precisava de ajuda, mas já o comandante da companhia se apossara do controlo da distribuição e pesquisava no maço dos oficiais uma carta para si. Desisti do meu intento de antecipação. Confortei-me com a certeza de que só faltava meia hora. Mas todos nós sabemos que há meias horas muito compridas, demasiado longas.
No início do almoço, sob o telheiro de campanha, o Resende entregou a um de nós o maço da correspondência destinada aos sargentos e a dos restantes militares ao sargento de dia à companhia que, de imediato, começou a ler o nome dos contemplados e a depositar o envelope num mar de mãos abertas que encaminhavam a almejada carta até ao destinatário.
O Soares foi o primeiro contemplado, eu tive duas cartas, outros também tiveram notícias frescas, e o Costa Pereira recebeu uma carta e uma pequena encomenda do tamanho de dois maços de tabaco, lado a lado, talvez um pouco maior.
Alguns não esperaram pelo fim da refeição e, enquanto comiam, iam lendo as notícias chegadas, o alimento do elo de ligação à família, às namoradas...
Outros comiam à pressa e, de carta em riste, afastavam-se, demandando privacidade, não fosse alguma lágrima taí-los para gáudio de outros. Eu fui um deles. Encontrei um jipe meio à sombra e instalei-me aí quando o Costa Pereira passou com a carta e a pequena encomenda.
Ficou de pé um pouco mais adiante, encostado às tábuas quentes de uma construção precária.
Como eu já tinha acabado, esperei por ele. Leu a carta, releu algum parágrafo que mais lhe interessou, mirou a encomenda, tentou enfiá-la no bolso da camisa, não conseguiu, abriu um botão e escamoteou-a dentro da camisa tufada. Fui ao seu encontro:
- Boas notícias?
- Boas... – retorquiu com um encolher de ombros. Havia uma certa ansiedade no seu olhar.
- Algum azar? – inquiri preocupado.
- Não, pá... sabes de alguma boleia para baixo?
- Não, mas ouvi dizer que o Lino ia ao material auto....
-Vou ver... Se o Miranda perguntar por mim, diz-lhe que ando por aí...
- E a encomenda? Ainda não a abriste?...
- Sei o que é... pode esperar.
Voltei a encontrá-lo mais tarde, decepcionado, mas com o volume da encomenda a sobressair da camisa.
- Então? – quis eu saber.
- Foi lá de manhã... – a decepção escorria de permeio com as suas palavras.
- Mas, para que é essa pressa toda? Algum azar? – insisti.
- Estou farto disto...
Também eu estava, estávamos todos e a fuga do Grafanil ao fim da tarde dava-nos algum alento. Largávamos a farda e o simples facto de nos vermos com roupas vulgares, uma simples camisa e umas calças, as botas trocadas por uns sapatos leves, aproximava-nos daquilo que éramos e que esperávamos desesperadamente voltar a ser.
Regressámos à cidade por volta das cinco. Por essa altura partilhávamos um quarto, o Costa Pereira, o Ribau e eu. Nesse dia não houve disputas pelo chuveiro. O Ribau, com um encontro marcado com um amigo para assuntos de fotografia reivindicou ser o primeiro, eu segui-o e o Costa Pereira, estendido sobre a cama, mirando o tecto, parecia desinteressado de tudo. Quando saí para ir ao correio antes de jantar. ainda ele estava a contemplar o estuque branco do tecto.
Jantei sozinho e, no final, voltei ao quarto para ver o que se passava. Ele continuava deitado sobre a cama de olhos brilhantes ainda em contemplação do tecto. Sobre a mesa-de-cabeceira que separava a cama dele da do Ribau, no gravador, uma pequena bobine de fita magnética tinha chegado ao fim. Sem me olhar, iniciou o processo de rebobinagem e “adivinhei” o que se estava a passar. Para confirmar, perguntei apontando a pequena bobibe:
- Era a encomenda que não quiseste abrir na nossa frente?
Confirmou com um gesto de cabeça e perante o meu silêncio acrescentou:
- É como tê-la aqui ao pé de mim, a falar comigo...
- Quem?... –interroguei e acrescentei provocante – a tua miúda?
- Não! Miúda não! -- retrucou com um olhar enviezado
- Noiva? Namorada?
Com um sorriso esplendoroso corrigiu:
- Conversada... Vai.-te embora, eu não vou sair.
Enquanto ele guardava a bobine na embalagem em que viera, comecei a debitar ordens, contrariando-o:
- Vais sim! Ainda nem jantaste e não penses que vais ficar aqui a ouvir a fita outra vez. Embora daí. Comes qualquer coisa na Paris e vamos dar uma volta...
-Fazer o quê?
- Sei lá! Sair daqui, ventilar este quarto – subitamente inspirado, propus – beber qualquer coisa!...
- Um uisque?... pagas?
- Eu pago o primeiro, se pagares o segundo...
- E o terceiro?...
- Jogamos às moedas... – arrisquei com a certeza de que a noite não ia longe.
Fim
(J. Eduardo Tendeiro)