Muxima- Subindo o Rio Quanza
Que rico tempo de tropa este que passámos na Muxima. Ora passeando, lendo, ou pensando no que se esconderia naquelas matas na outra margem do rio.
Nisto ouço as moças que estavam lavando roupa no rio a gritar:
- Ai o minino, acudam que ele morre afogado. Meu “ferier” acode!
Corro para a margem do rio e o que vejo eu: - O Zé cozinheiro a nadar contra a corrente, tentando atingir terra firme.
Pensei em tirar a roupa e ir ajuda-lo, mas com a forte corrente que fazia o mais provável era ficarmos os dois, e afogarmo-nos.
Então gritei-lhe como que a dar-lhe uma ordem: – Nada a favor da corrente que eu vou lá abaixo ao cais de embarque e ajudo-te a sair da água!
Ele assim fez. Eu corri para o cais. Ao ver a minha aflição dois soldados que andavam por ali a consumir o tempo, indagaram o que se passava. Sempre a correr contei-lhe o sucedido, eles seguiram-me. Quando chegámos já o Zé tentava agarrar-se ao capim da margem e por fim às estacas do cais. Pusemos-lhe a mão, ajudámo-lo a subir e só consegui descontrair-me depois de o ver deitado no cais a arfar. Para os soldados que tinham vindo em ajuda comigo, foi um gozo.
- Com que então o amigo Zé a mostrar as suas habilidades natatórias às lavadeiras ia ficando no rio. Tens cabelos loiros, olhos azuis e uma pele branquinha… Elas gostam é de cabelos encarapinhados e pele preta, da cor dos tomates…
Eu que tinha assistido ao drama do Zé, não gostei nada daquela brincadeira e tive de lhes dar dois berros para acabar com aquela demonstração de mau gosto.
Nisto chegou e Enfermeiro Civil a saber do que se tratava. Ao ver o Zé de fato de banho imaginou o sucedido, e tomou-lhe o pulso
- Está tudo bem, diz ele. Tens frio, não tens?
- Sim diz-lho o Zé, a tremer.
- Então vai à tua caserna, embrulha-te num cobertor, e caminha dentro da caserna até não sentires frio. Depois senta-te um bocado na cama, que isso passa.
- Estes indivíduos não têm noção da força deste rio, facilitam e depois têm problemas destes, diz-me o Enfermeiro.
- Se ele não tivesse obedecido à sua ordem a estas horas estaria no fundo do rio, continuou!
Este caso deixou-me estarrecido, pois pus-me a pensar, no caso de ter havido um azar, como é que iríamos dar a notícia à família! Este rio sempre me meteu muito respeito, pela sua grandeza, pala força das suas águas.
Passei em frente à igreja da Nossa Senhora da Muxima. Estava fechada. Mesmo assim não deixei de parar por momentos, e, mentalmente agradecer à Senhora da Muxima o facto de o Zé estar salvo. Tinha passado em frente à Igreja nadando desesperadamente tentando salvar-se!
Passei pela caserna a saber da recuperação do Zé. Tinha-se deitado, mas, ao reparar em mim levantou-se e recriminou-me:
- Para que levou o meu Furriel os dois soldados consigo? Não conseguia dar-me a ajuda sozinho?
- Ó pá, eles é que viram-me tão aflito e foram comigo para ajudar. Parece que ficaste envergonhado por eles verem a tua aflição! Deixa lá, isso já passou tudo, felizmente.
Fui chamado ao Alferes Miranda a quem contei o sucedido.
- Não sabia diz-me ele, mas já que está tudo bem, melhor! Mas não foi por isso que o mandei chamar. Um fazendeiro de uma pequena roça que existe rio acima, veio avisar o governador que pelas redondezas da roça andavam a aparecer pretos desconhecidos, que não eram daquela zona e eu fui “convidado” para irmos lá almoçar amanhã.
- Mas a roça fica do outro lado do rio, como vamos para lá?
- Já está tudo combinado, e amanhã cerca das dez horas, vem dois serviçais da roça buscar-nos da canoa.
- De canoa? Inquiri eu, pensando no caudal do rio!
- Sim de canoa. Almoçamos lá e à tarde eles vem trazer-nos. A canoa pode levar quatro pessoas. Vou eu, tu, e talvez o Cabo Pombal e o Cabo Braga. É preciso que eles saibam nadar. Pode haver um azar. Eles levam as suas G3 tu a FBP. Eu levo a minha pistola Parabellum.
Fiquei pensativo. Uma viagem de canoa…naquele rio… mau…mau…
Falei com o Braga e o Pombal. Disseram que sabiam nadar. Transmiti-lhes as ordem do Alferes Miranda. No dia seguinte tudo estava pronto à espera da canoa, piroga ou o que fosse. Tínhamos de ir.
À hora combinada lá apareceu uma piroga, grande, feita em ferro, com um tripulante à proa e outro à ré. Em ferro conjecturei eu com os meus botões. Se ao menos fosse em madeira, e no caso de se virar não ia ao fundo…
Embarcámos cautelosamente, sentámo-nos no fundo da canoa cumprindo as ordens dos tripulantes (assim não balança tanto) disseram eles, e lá seguimos viagem rio acima, pela margem esquerda onde fazia menos corrente, mas, mas era a zona onde habitavam os crocodilos. Tive medo. Perguntei aos tripulantes se ali não havia crocodilos. Que não. Eles “moravam” mais para cima no rio e nós não passávamos por lá.
Fiquei mais descansado! No entanto ia olhando, paro o fundo, que não se via. Só se via uma espécie de caniço – um capim grosso - em que os tripulantes apoiavam as varas com que movimentavam a canoa.
- É muito fundo? Perguntei eu!
- Não tem fundo diz-me um tripulante!
Preocupado, mas a viagem seguia. Pensei que os homens sabiam bem o que faziam e tentei deixar de pensar no lugar onde nos encontrávamos, olhando a paisagem que só se via na outra margem. Na margem por onde seguíamos só se via capim alto, que vindo do fundo do rio de não sei quantos metros, subia ainda fora de água uns dois metros.
Só se ouvia o marulhar da água e o ruído das varas batendo contra a canoa. A bordo era o silêncio total. Os tripulantes na sua labuta contra a corrente. Nós desejosos de chegar a terra firme.
- Olhe meu Alferes há na outra margem construções em madeira, disse eu!
- É a casa do patrão diz um tripulante.
- Graças a Deus!
Avançamos mais um bocado para montante. O rio teria de ser atravessado, com as varas a “paijar” como se fossem remos, dada a profundidade do rio!
Atravessamos sem mais problemas e acostamos junto às construções do outro lado do rio.
- Não levanta até nós saltar para terra e encostarmos bem o barco a terra, diz um tripulante.
- Podem saltar.
Nós assim fizemos e mal pusemos pé em terra firme, respirámos de alívio!
O Rio Quanza visto da Fortalesa da Muxima
O dono da roça esperava-nos. Cumprimentou-nos e agradeceu a nossa comparência. Sabíamos ao que íamos pelo que demos umas voltas pela roça. O Alferes com o Braga por um lado, acompanhados pelo roceiro, e eu e o Pombal por outro. Não notámos nada de anormal, mas a nossa missão era sermos vistos, razão pelo que “passeámos” pela roça. Findo o passeio fomos convidados a almoçar. O homem da roça era um rapaz ainda novo, dos seus trinta e poucos anos. A roça era de palmeiras, e o almoço foi frango, uns pedaços assados, e outros fritos em óleo de dem-dem.
O frango frito parece que sabia a ranço! Intragável. Felizmente que havia o assado, este sim saboroso!
Nisto ouço o choro de uma criança e olho com olhar interrogativo para o roceiro:
- Não há problema tenho um filho de meses e a mãe está a dar-lhe de mamar.
- Posso vê-lo? pedi eu, ao recordar o meu segundo filho, que estava no “Puto”
- À vontade.
Ao entrar na cubata o bébé, deixou de mamar e olhou-me com um olhar de curiosidade. Depois desinteressou-se e continuou a alimentar-se.
Fiquei a olhar aquela cena e a pensar longe…
O roceiro entrou, e ao ver-me diz-me:
- O meu Furriel, se quiser sirva-se!
Não ví nada de que pudesse servir-me e perguntei:
- De quê?
- Da mulher…
Foi como se eu tivesse levado um soco na cara…
- Não obrigado, foi a única coisa que consegui balbuciar…
Fiquei abismado. Aquela mulher, ainda nova, dos seus dezassete anos só lhe serviria como entretimento, ou para servir as visitas?
Regressámos à Muxima. A viagem foi mais rápida a favor da corrente. Desembarcámos e os barqueiros seguiram viagem para a sua terra.
Durante o resto do dia fiquei a pensar naquele homem. A sua companheira não era mais do que um animal, que oferecia a seu belo prazer a quem lhe aprouvesse.
Impressionado, contei o ocorrido ao Enfermeiro Civil, que achou normal o que havia acontecido.
- Aqui, em Angola, diz-me ele, quando o Chefe de Posto vai fazer a delimitação da propriedade que é atribuída ao “branco”, logo lhe escolhe na Sanzala mais próxima uma rapariga nova, que seja bem parecida, para criada do branco – “criada para todo o serviço” – e elas gostam pois não podem já ser vendidas para qualquer preto, que a obrigaria a trabalhar para ele, enquanto ele nada faz. Por isso os pretos ricos têm varias mulheres…
A mulher do branco só trabalha para ele e em casa, enquanto a mulher do preto é obrigada a ir trabalhar para a “lavra”.
A.Ribau Teixeira