Quinta-feira, 04.12.08

C A T E T E

 

     A ESTADIA (CURTA) EM CATETE
 
Muxima era “bom” demais. O 3º. pelotão não podia ter a sorte de permanecer lá muito tempo. Era preciso um pelotão de “velhos” para reforçar, principalmente a confiança, das tropas “maçaricos” que se encontravam em Catete e, novamente saco às costas, toca a andar para lá.
 
Com vinte e quatro meses de comissão, estávamos em Catete.
Catete, era uma pequena cidade a setenta quilómetros de Luanda na estrada que ligava Luanda à cidade de Salazar. Era atravessada por uma longa rua que, partindo da estrada, nos levava na direcção da Estação Ferroviária.
Os sargentos e os soldados foram instalados num armazém, que ficava próximo da estrada, do lado direito da “avenida” que seguia para a estação.
Para festejar os vinte e quatro meses, que deveria representar o fim da comissão, assámos um cabrito e convidámos alguns oficiais e sargentos das outras unidades.
O primeiro reforço que a minha secção fez a um pelotão dos novos foi numa patrulha motorizada. Passámos por grandes plantações de algodão que luzia e já me parecia pronto para apanhar. Era um deserto, não de areia mas de algodão em rama, de que não se via o fim. A certa altura a estrada apresentava-se ladeada de árvores. No fim da alameda avistava-se um portal. Estava fechado e ninguém apareceu a abri-lo. Demos meia volta e regressámos a Catete. Alguém disse que naquela zona havia MABECOS que, como andavam sempre em bandos, eram muito perigosos para uma ou duas pessoas que se deslocassem a pé, se fossem apanhados seriam comidos por eles.
 De noite, tínhamos de controlar as viaturas que passavam na estrada principalmente as de carga, em especial o que transportavam. Deviam ser acompanhadas de uma guia, onde vinham todos os artigos declarados, e que tinha de estar assinada e carimbada pelo Administrador da terra donde provinham e que seriam depois controladas pelas autoridades quando fossem descarregadas. Uma noite, estava eu nesse serviço, mandei parar um carro que transportava diversos artigos, entre os quais sal. Quando pedi a guia, o homem, um comerciante branco, apresentou-me um livro de guias em branco, todas assinadas por um Administrador. Para espanto meu, disse que tinha a confiança do Sr. Administrador que, para facilitar, lhe assinava diversas guias em branco que ele depois preenchia quando carregasse e que se tinha esquecido de preencher aquela. Levei o caso ao Alferes que, pouco tempo depois me ordenou para deixar partir o homem. Não sei se foi por iniciativa dele ou se por ordem superior.
Uma tarde ouviu-se uma grande algazarra para os lados da estação. Fui até lá para saber o que se passava. Quando lá cheguei vi que eram duas mulheres que tinham andado à pancada. Perguntei: o que se passa? Disseram-me: são mulheres do mesmo homem e ele naquela semana devia dormir com uma delas mas foi dormir com a outra. Ciúmes...
 
Miranda
 
 
publicado por gatobranco às 18:44 | link do post | comentar
Segunda-feira, 01.12.08

M A R IA (J.E.Tendeiro)

 

           Maria. Homenagem a uma Mãe
 
 
 
Eram muitas, mas só a ela chamavam Maria. Só Maria. Havia Marias da Anunciação, do Carmo, do Rosário, da Purificação e tantas outras que eram assim chamadas. Mas ela, quando a chamavam, era Maria. E o nome dela  nem era feio: Maria José. Só a Mãe o usava e quando o ouvia ficava a tremer. De certeza que tinha descoberto qualquer das pequenas tropelias que ela, muito pela calada cometia.
A sua primeira grande alegria foi a de ter casado com o José. Chorou de alegria, o amargo das lágrimas a saber-lhe bem, os olhos a rirem-se acompanhando a boca.
Mas Maria não era muito de chorar. Comovia-se como qualquer outra, mas não chorava.
Chorou, chorou de dor pela primeira vez quando o marido morreu colhido por uma máquina agrícola. Chorou-o enquanto o velava e no cemitério. Mas em breve as lágrimas se secaram. Era preciso tocar a vida e com a ajuda do único filho de doze anos, trabalhando com afinco, conseguiram manter a casa.
Em 1961, António foi às inspecções militares. Como se esperava, foi aprovado, mas todos mantinham a esperança de que não fosse chamado. Tinha metido os papéis para amparo de mãe.
Mas, em Janeiro, foi chamado para uma incorporação. As notícias na rádio eram assustadoras. Relatos de barbaridades cometidas em Angola, a saída apressada dos contingentes militares, não deixaram qualquer esperança a Maria José. No recato da sua casa chorou, o coração oprimido, as lágrimas salgando uma prece longamente murmurada.
António esteve com ela alguns dias, poucos, antes de embarcar.
De noite sentia-a chorar e de dia animava-a “ que não ia ser nada, que eram dois anos que haviam de passar depressa”. Ela concordava, dava-lhe conselhos, as faces tentavam um esgar encobridor da tristeza e, com as pálpebras meio cerradas, escondia as noites de lágrimas
No dia da despedida, logo de manhã, à mesa, com a caneca de café à frente, em voz mansa, António inquiriu: "Mãe, se não me fizerem mal, eu tenho que os matar à mesma?”
Com um soluço contido, ela respondeu: “Meu filho, tu não vais matar ninguém, vais ver que não…”
O autocarro levou-o e Maria furtando-se ao apoio que lhe queriam prestar, refugiou-se no seu quarto.
Chorou, o fel das lágrimas a amargar na boca, os olhos enevoados.
Dois meses depois, um “aerograma” contou-lhe que António estava bem, que Luanda era uma maravilha e não havia guerra. Estava para ir para o Norte, mas não podia dizer para onde.
Com a folha de papel manchada de lágrimas permanentemente no bolso do avental, relida até a poder dizer de cor, Maria respondeu que “com a Graça de Deus tudo havia de correr bem” e contou novidades da terra.
As notícias tardaram, mas chegaram com uma fotografia do António fardado com um “camuflado,” encostado a uma camioneta, abraçando uma espingarda e sorria. Olhou-a longamente, com um arrepio.
Não a mostrou a ninguém. Na mesa-de-cabeceira, virada para si, passava horas mirando-a. Parecia-lhe mais magro No recato do seu quarto, chorava, as lágrimas cavando os primeiros sulcos numa face que fora sempre mimosa, mas onde as primeiras rugas pregueavam a testa e bordejavam os olhos.
Passou muito tempo sem notícias até receber dois aerogramas no mesmo dia. Leu-os, sôfrega, sem respeitar datas. Um falava-lhe do muito tempo passado no acampamento, perto de um rio – às vezes tomavam lá banho – onde pouco ou nada havia que fazer para além de umas quantas patrulhas. Se havia terroristas, ninguém os via. O outro e vários outros chegados com periodicidades enganadoras em relação à data da remessa, não adiantavam mais.
Maria duvidava, preocupava-se. Seria que tudo era assim tão mau  que o seu filho tivesse que o encobrir? Naquele primeiro ano, só uma vez lhe disse que tinha havido tiroteio e fazia humor com o animal que tinha motivado todo aquele desassossego.
Maria, que passava parte do tempo com o ouvido colado ao pequeno rádio ouvindo notícias da guerra, duvidava de tudo, das notícias da guerra, das do filho e, sempre que era noticiada uma morte, arrepiada, chorava o filho perdido nos confins do mundo, talvez já morto no momento em que pensava nele. As noites de pesadelo multiplicavam-se, as rugas acentuavam-se cavadas por lágrimas choradas na noite, incapaz de conciliar um breve sono.
Depois de um longo período sem notícias, chegou uma carta com carimbo de Luanda. Trémula, agoirando desgraça, soube que o filho tinha sido ferido e que vinha para Lisboa, para recuperar. António prometia avisar logo que chegasse.
As pernas recusaram suportar o pouco peso de Maria que emagrecia de dia para dia e só as mãos carinhosas de amigos evitaram que tombasse como se fulminada. Uns garantiam que “do mal o menos, continuava vivo” outros asseveravam que não havia de ser nada de grave e o cunhado, irmão do falecido marido, jurou que logo que o António chegasse, havia de a levar a Lisboa, a vê-lo.
Foram. Encontraram-no num antigo quartel entretanto transformado em depósito de doentes vindos da guerra. António, apoiado numa muleta, uma perna pendendo inútil, a face crivada de cicatrizes, viu-os chegar. Tinha sido uma mina, contou mais tarde. Abraçado à mãe sentiu as suas lágrimas no ombro, repassando o fino tecido do pijama.
Passado o choque inicial, sentados lado a lado, contou à mãe que em breve iria para um hospital alemão que estava a fazer maravilhas com estropiados de guerra. Em Luanda, o médico tinha-lhe garantido que voltaria a andar sem qualquer muleta.
Maria José, enxugando lágrimas que teimavam em inundar os caminhos que muitas outras tinham escavado em todos os sentidos no seu rosto esquálido, oscilava a cabeça num gesto de confiança que não sentia.
Ao longo de intermináveis meses, quase sempre levada pelo cunhado, outras em intermináveis viagens de autocarro, passava algumas horas com o filho tentando manter nele a chama de esperança que esmorecia.
Tempos depois, após longas consultas e testes exaustivos, foi mandado para casa, desobrigado de qualquer serviço militar.
Maria não suportou ver o filho apoiado numa muleta com a perna a oscilar, inútil.
Aos quarenta e oito anos foi a enterrar como se tivesse oitenta.
Regressando do serviço religioso, o padre Alberto comentou:
– Uma Mãe morta por Angola.
 – E quantas mais não haverá por aí!... – Comentou o senhor Júlio, cabisbaixo, acertando o passo pelo do padre.
 
J. Eduardo Tendeiro (ex- Combatente da Companhia de Caçadores Especiais 306, Angola)
Em “ A Mulher Portuguesa na Guerra e nas Forças Armadas” Editado pela Liga dos Combatentes, Copyright 2008.
publicado por gatobranco às 21:42 | link do post | comentar | ver comentários (1)

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