NA BARRACA
Tinha passado o tempo de Cabo Ledo, e o tempo da Muxima. O fim aproximava-se. Agora íamos regressar ao Grafanil.
A Cidade Grande parecia chamar por nós, e nós respondemos à chamada e um dia lá regressámos. Estava tudo no sítio. Só Luanda tinha aumentado muito, tanto na Cidade do Asfalto, como na dos musseques.
O ruído da cidade contrastava com a calma donde vínhamos. Mesmo assim era agradável, e nós na casa dos vinte anos, aproveitávamos o tempo e o dinheiro de que dispúnhamos.
A Cervejaria Biker, era o lugar habitual onde se bebia cerveja, agora acompanhada de pedacinhos de dobradinha cozinhada com muito gindungo, que era servido num pires, com um palito que substituía o garfo:
- Um por cada caneca! Os coiratos tinham sido substituídos!
Havia melhor. Nas cervejarias da Ilha era por cada caneca servido um prato de gambas, mas custava vinte angolares. Era muito dinheiro para alguns de nós!
O tempo passava, parecia agora com mais velocidade. Mas, nunca mais era sábado, como nós dizíamos (o que queríamos dizer é que nunca mais chegava o dia do embarque de regresso).
Ainda por cima o nosso pelotão (somos um pelotão de sorte) … foi destacado para render outro que fazia a segurança a um pelotão de engenharia, que construía uma ponte sobre um rio, a leste de Catete, na zona da Barraca. Era só uma semana…
Lá pensei eu numa semana a comer ração de combate! Felizmente não. Estava lá estacionada uma cozinha de campanha do pelotão de engenharia que faria as refeições para todo o pessoal! Só tínhamos de levar a marmita para a comida, cantil para a água, a colher, o garfo, e um cozinheiro para o serviço! Ah! E os panos de tenda para montar as tendas, se quiséssemos ter onde nos abrigar.
Lá fomos, auto-transportados nas nossas viaturas. Era perto, cerca de oitenta quilómetros. Chegámos à tarde. O pelotão que substituímos tinha-se retirado de manhã.
Miranda à porta do seu "apartamento"
Montámos as nossas tendas que ficaram num buraco, abrigadas do eventual fogo directo de inimigo, pois a engenharia tinha cavado aquele local para fazer os muros em volta, mas, no caso de uma granada de morteiro cair ali, era o fim de um pelotão. Enfim, já tinha servido para os outros, serviria também para nós…
Conversámos com os engenheiros que já conheciam o terreno, e nos indicaram como o outro pelotão fazia a segurança. Durante o dia uma secção atravessava o rio e as outras duas ficavam do lado do acampamento.
Quando terminavam os serviços do dia, todos reuniam no acampamento, e aí passavam a noite.
Concordámos.
Enchi o meu colchão insuflável que estava sempre reservado para estas ocasiões e meti-o na tenda, não sem alguma dificuldade, pois a tenda era pequena e tinha de abrigar três indivíduos. Como era dividido em três secções a solução foi atravessa-lo na tenda. Duas das secções ficavam no chão, e a terceira ao alto junto a parede da tenda. Só evitava que as nossas costas ficassem no chão, mas era melhor do que nada…
As duas primeiras noites passaram-se menos-mal. Logo de manhã era o café, e a secção destacada avançava para o outro lado do rio, onde ficava até ao almoço. Da parte da tarde avançava outra. O calor na zona onde nos encontrávamos era tórrido. Passado o meio da tarde a única solução era arranjar um ramo com folhas, para sacudir os moscardos, que, mesmo através do fato de combate nos ferravam nas costas, chegando a provocar sangue. O maqueiro teve nessa ocasião muito serviço a desinfectar essas feridas, com álcool, operação que só se podia realizar perto da noite, quando a temperatura baixava e os moscardos desapareciam.
Na terceira noite choveu. Pela noite velha quando a chuva intensificou, demos por nós com os pés todos molhados. Sentámo-nos no colchão evitando uma molha completa.
Já havia soldados enfiando o poncho tentando evitar uma molha ainda maior.
De repente um grande trovão ribomba por aquele negrume, rompendo aquelas nuvens. A chuva parou. O céu começou a clarear. Fez-se madrugada. Todo o pessoal se levantou. Havia qualquer coisa a mexer-se no chão. Cuidado!
Acendi a lanterna de mão e todos ficámos boquiabertos.
Eram às centenas, talvez milhares de tartarugas/cágados bébés, que apareciam de debaixo do chão, e se dirigiam arrastando-se em direcção ao rio. Para caminhar tínhamos de os afastar com a bota para não os esmagarmos.
Nunca tínhamos visto semelhante espectáculo ao natural. Somente no cinema!
Nesse dia, para atravessar o rio para a outra margem, tivemos, com a ajuda da engenharia, de montar uma ponte com cordas, agarrados às quais fazíamos a travessia numa pequena jangada O caudal do rio com a chuva tinha subido desmesuradamente. Na verdade uma ponte fazia muita falta naquele local!
O tempo custava a passar, dado que o único serviço era de segurança, e por uma semana não valia a pena levar um livro sequer!
A máquina fotográfica, essa seguia-me sempre! Lá tirei algumas fotos interessantes, pois mesmo de serviço a própria observação do ambiente, me facultava motivos de interesse.
Nesse dia, a roupa secou conforme foi possível. Uns tiravam o casaco, dependuravam-no numa árvore, enquanto sacudiam fervorosamente os moscardos com um ramo verde.
Outros ficavam só com as cuecas e as botas, roupa a secar numa árvore, enquanto com um ramo verde tinham de executar uma espécie de dança, tentando fugir as ferroadas dos moscardos.
Vida malvada, e nós por ali só pensando no regresso, o que dificultava a passagem do tempo.
Como estarão os meus filhos. O mais novo já falará?
Felizmente tem os avós que os acarinham.
Agora recordo um problema que ouve com o registo do filho mais novo e que um meu irmão me contou numa carta que recebi há dias.
O Avô materno foi para regista-lo no Registo Civil em Ílhavo. Não conseguiu. Só o pai o poderia registar…
- O pai está na guerra em Angola. Não pode vir! Nem assim com a verdade conseguiu!
Desiludido regressou a casa e contou à filha o sucedido. Esta contou ao meu pai. Havia prazos a cumprir!
O meu pai, que conhecia o funcionário de Registo Civil foi no dia seguinte à Conservatória:
- Oh Senhor Augusto, o meu compadre veio cá ontem para registar o nosso neto, e o Senhor não o quis registar: Que se passa?
- O senhor sabe que só os pais podem registar os filhos…
- O Senhor sabe onde está o meu filho? Anda na guerra em Angola. Vá lá busca-lo, já que só ele pode registar o meu neto…
O tom de voz do meu pai, as mãos calosas agarradas ao balcão, não previa nada de bom!
- Oh Manel, tem calma, diz um de dois gafanhões que acabados de chegar, aguardavam ser atendidos e ouviram a conversa. O assunto tem de se resolver.
- Nós sabemos o que se passa. O Senhor Augusto tem de registar o menino. Conhecemos os pais, e os avós. Não vemos razão para o não fazer, porque então nós dois servimos de testemunhas em como o senhor não quis regista-lo, e o caso muda de figura!
O Senhor Augusto, olha-os de lado, pega nuns papéis e decidiu-se:
- Vamos lá a isto. Preencheu os papéis, com o nome, sobrenome e apelido, deu-os a assinar ao meu pai e às testemunhas, e o meu filho ficou registado.
O Senhor Augusto era um homem sociável, mesmo simpático, de cor preta. Estaria afectado pela cor da pele, e ligaria isso ao lugar onde me encontro? Creio que não. Mas…
Passagem do rio
O acampamento
A semana passou, e, finalmente recebemos ordens: -iríamos para Catete. Não era nada que se comparasse com Luanda, mas o Pelotão ficaria sozinho, sob as ordens do Alferes. A experiência da Muxima tinha sido boa. Só que aqui não há reserva de caça, como lá, em contrapartida há muito mais população civil fixa e muito mais passantes.
A estrada que atravessa Catete segue para leste e mais à frente bifurca para o norte para Maquela do Zombo e para sul para Nova Lisboa. A que segue para leste vai para a zona do algodão.
As inspecções às viaturas, especialmente de noite obrigar-nos-hão a muito mais trabalham.
Ansiamos por deixar estes malvados moscardos. Falta pouco para os vermos pelas costas.
A.Ribau Teixeira "Memórias"
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