O Capelão
Finalmente houve novidade. O capelão vinha na semana seguinte fazer uma visita à Companhia. Era novidade. Fosse uma trovoada, uma cobra, tudo o que fosse anormal era novidade! Comeria com os oficiais, conversaria muito tempo com os soldados de quem procuraria saber as necessidades, e acabaria na conversa na caserna dos sargentos, já à luz da vela, pois a luz apagava sempre às vinte e três horas.
Chegou finalmente a semana seguinte, e com ela o Padre Capelão do nosso Batalhão. Vinha com ar satisfeito, fato de combate novo, enfim, parecia um “maçarico”. Qualquer elemento que chegasse de novo à unidade, para ficar, era apelidado de maçarico.
Como se previa, almoçou com os oficiais, e depois foi para a parada e ia conversando com uns e outros. Como estava a correr a vida. Como era a alimentação. Das operações não perguntou nada. Tinha feito uma com o nosso pelotão, e parece que lhe bastou para ficar a saber como eram. Nisto o “Sapatelhas” – nome por que ficou conhecido por não conseguir dizer sapatilhas – era um bom jogador de futebol, rapaz natural de S. João da Madeira, atira:
-Sabe o que nos falta aqui? O Padre Arnaldo ficou a olhar para ele, a pensar no que faltaria ali.
- Sapatelhas, disse – lhe eu, vê lá o que vais dizer!
Todos sabíamos o que faltava naquele acampamento, naquele e noutros, que estavam completamente isolados. Éramos todos homens na casa dos vinte e tal anos…
O Sapatelhas acalmou-se, e as conversas prosseguiram noutro sentido, até que se fez hora do jantar. Nesse dia o Padre Arnaldo deu-nos a honra de jantar com os sargentos.
Depois do jantar, foi a conversa habitual do passar tempo. O Padre Arnaldo então atirou-me à queima-roupa:
- Ribau então na semana passada houve um problema consigo. O que se passou?
– Nada Padre. Mas o Doutor devia ter mantido o segredo profissional!
- O Doutor porquê? Não foi ele que me disse nada, ripostou o Padre. Foi um soldado que ao ouvir a lengalenga dos teus colegas tentou inteirar-se do que aquilo queria dizer, e alguém lho contou. - Com que então “nos cornos não que sou casado”! Sim senhor. Essa foi boa!
Fiquei embatucado, e não arranjei de momento resposta.
A conversa prosseguiu, e a minha cabeça a trabalhar. Tenho de arranjar processo de chatear também o Padre. E saiu-me esta.
- O padre Arnaldo sabe porque é que o sétimo mandamento tem um tracinho?
- Não respondeu – me.
- Então ouça:
-Quando Moisés foi ao Monte Sinai receber as Tábuas da Lei com os dez mandamentos, foi sozinho lá acima. Os restantes homens ficaram cá em baixo à espera.
Ao regressar tinha de ler o que diziam os mandamentos da Lei de Deus, para todos saberem. Moisés começou a ler;
- 1º Adorar a Deus sobre todas as coisas
- 2º...
- 3º…
- 4º…
- 5º…
- 6º
E todos, os presentes iam acenando afirmativamente com a cabeça, em sinal de
aprovação.
Chegado ao mandamento seguinte
- 7º Não desejar a mulher do próximo
Então todos os presentes em voz alta responderam. – CORTA!!! Moisés como que envergonhado, fez um tracinho na perna do 7, mas, como era a Lei de Deus, não podia anulá-la. E assim ficou o sete com um tracinho, até que apareceram os computadores, e os americanos decidiram que a perna do sete não precisava de tracinho.
Vê agora Padre a razão porque eu chamei a atenção ao Sapatelhas? Embora não houvesse mulher de ninguém próximo, o que ele desejava era mulher, quer fosse do próximo ou do afastado. Ele naquela altura também não concordava com o sétimo mandamento.
A conversa espevitou, embora alguns não concordassem com o que eu disse. O Miranda até disse que não valia a pena falar nesse caso. Era como a vingança do chinês. O Costa Pereira que era ligeiramente gago só disse: - Pois, pois! Não sei se aprovando se reprovando a minha “lição de moral”!
O certo é que a conversa pegou. Discutiu-se a alteração do tracinho do sete tinha sido pela razão apontada. A mim parece-me lógico. Não havia mulheres, só homens, quando Moisés desceu do monte Sinai. As mulheres ficavam em casa, não tinham voz activa. Os homens, até porque tinham recebido do Criador a missão “ Crescei e multiplicai-vos”, que queriam cumprir, é lógico que quisessem cortar o sétimo mandamento.
E já que falamos de religião:
- Quando era pequeno e andei a aprender a doutrina – católica, claro, – foi-me ensinado que Deus era um ser infinitamente bom, infinitamente amável, e que tinha feito o homem à sua imagem e semelhança. Das duas uma. – Ou Deus não era bom, ou não tinha feito o homem à sua imagem e semelhança.
Se fosse como me ensinaram, não haveria guerras, haveria a paz no mundo. Nós não estaríamos aqui neste fim de mundo. Estaríamos com as nossas famílias, nas nossas casas
-Aí pára, disse o Padre Arnaldo, meio zangado. Deus era bom, e era tão bom que deixou ao homem a liberdade de escolha. Talvez fosse esse o seu único erro quando fez o homem. Não o afirmo, mas, pelo que vemos no mundo em que vivemos, há qualquer coisa que não está bem. O homem não soube escolher.
O espírito do mal a que chamamos “demónio”, tem influência sobre o homem, e o próprio homem é que tem de decidir, qual o caminho que quer tomar. Não culpemos Deus por ter deixado ao homem a capacidade de decisão.
-Pelos vistos, Padre Arnaldo, o demónio tem mais força do que Deus. Os homens obedecem-lhe com mais facilidade de que obedecem a Deus. A prova está à vista. Olhemos o mundo. O que vemos? Só desgraças. Guerras em toda a parte. A ganância de mandar, do poder, do dinheiro. Ricos muito ricos, pobres muito pobres. Estes, por vezes sem uma côdea de pão para dar aos filhos que choram com fome.
A democracia – que linda palavra, deve vir de demo – que deveria distribuir igualitariamente a riqueza por todos, é o que vemos!
O comunismo, em que todos deveriam viver em comunidade – os que podem aos que precisam! – O que vemos nós? Vemos os que podem, meia dúzia deles, a explorar os que precisam, que são milhões. Seria para isto que o mundo foi feito? É caso para dizer, que foi a frase que aprendi: - Valha-nos Deus!
Afinal em que ficamos! Isto estava tão mal que o Criador, “enviou” à terra um seu emissário a que nós chamámos Jesus Cristo. Mas nem Cristo conseguiu endireitar os homens.
O Crava meteu conversa. Ele que não era católico, não era protestante, não era nada, quanto a religiões, parecia ter estado interessado na conversa. – Mas vocês acreditam que Cristo foi concebido por obra e graça do Espírito Santo, que desceu à terra num carro de fogo, que Maria a mãe de Jesus era virgem e continuou sempre virgem, mesmo depois de dar à luz um filho?
-Olha o Sargento Crava, disse eu. Parecia estar a dormitar e afinal estava com atenção no que se estava a passar.
- Ouça uma coisa: - No tempo em que a bíblia narrou esses factos, para que eles fossem considerados credíveis, não o podia ter feito de outro modo.
Hoje, se a bíblia fosse reescrita – e ela já o foi algumas vezes, de acordo com as conveniências de alguns Papas – e dado o avanço da ciência, que foi um bem dado por Deus, que nós não deturpámos, seria outra.
- Outra qual, perguntou o Crava?
- Quer ouvir?
- Sim, diga!
- Eu poderia explicar-lhe que a terra não é o único planeta a orbitar no espaço. Há mais.:
Um dia, num desses planetas houve problemas e os seus habitantes deslocaram-se para a terra, onde passaram a viver sob determinadas ordens – mandamentos. Mas fosse porque diabo fosse, os homens começaram a asnear. Então Deus resolveu enviar à Terra um seu emissário, mas fê-lo de modo a que os homens o aceitassem. Seria igual a eles, fisicamente, mas como ser superior que era, tinha uma inteligência também superior.
- Foi escolhida uma mulher terrena, pura fisicamente, de acordo com os cânones dos Deuses. Essa mulher chamava-se Maria. Ela daria à luz um ser superior. Assim foi.
- Foi enviado à Terra um emissário a que os antigos chamaram Espírito Santo. Veio num carro de fogo – hoje chamar-lhe-íamos, foguetão. Maria foi inseminada artificialmente, pelo que ficou virgem. Quando do nascimento, foi feita uma cesariana – pelo que Maria continuou virgem. Estes factos, na altura do acontecimento não poderiam ser narrados desta maneira, não haveria provas. Do facto continua a não haver provas, mas o que eu contei, tem, na actualidade, consistência. Já se fazem as duas coisas. A inseminação artificial e a cesariana! É uma explicação mais plausível.
-O Ribau hoje está com veia de filosofo! E quem se fosse deitar? Diz o Padre Arnaldo, como que a querer pôr termo à conversa! Era uma hora e meia da madrugada. Alguns já apresentavam os olhos pequeninos. Já mal se viam à luz da vela! Assim fizemos. O Padre foi dormir para a enfermaria numa maca, e nós começámos a preparar-nos para a deita. Tirar os camuflados, tirar as botas, e, como sempre, lá veio o cheiro a licor de peúga. Era sempre assim. Depois com o tempo, aquele aroma desaparecia. Alguns já sonhavam com o dia seguinte! Adormeci também.
No dia seguinte logo de manhã o primeiro pelotão preparou-se, para ir a São Salvador. Era dia de reabastecimento e calhava ao primeiro pelotão esse serviço. O terceiro pelotão – o nosso – estava de serviço ao acampamento. Serviço de segurança. O quarto pelotão de serviço à água e lenha. Para o segundo pelotão era dia de descanso.
Depois do almoço, o calor era tórrido. Como eu gostava de subir ao posto de observação e olhar a paisagem, quando estávamos de segurança, até que por vezes corria lá uma aragem fininha, agradável, por o local ser elevado, resolvi ir até lá. O calor não era tanto. Mas aragem nem vê-la. Sentei-me a olhar.
Para poente, logo a seguir ao arame farpado existia um profundo vale. Lá ao longe era a estrada para São Salvador. Não se via mas imaginava-se. Aquela hora a malta já devia estar a tratar de carregar as viaturas.
Olho para o relógio: - três horas da tarde, dia 2 de … Julho de 1962. Continuei a olhar, agora para noroeste. Era a saída do nosso acampamento para a Buela. Mais adiante a estrada virava à direita, para o norte, em direcção à Buela. Se deixássemos a estrada e
seguíssemos em frente, sempre para noroeste encontraríamos uma picada, que parecia ter sido muitas vezes calcada. Seguia sempre pelo cume de um monte com um vale profundo de cada lado. A visão era boa para todos os lados de maneira que ali não haviam possibilidades de emboscada. Explorámos essa picada e, mais uma vez surpresa. A picada terminava onde acabava o cume e no final estava implantado um marco geodésico. A seguir era o vale profundo e no fundo do vale mata luxuriante, com arvores que pareciam de grande porte. Só víamos as copas.
Para nascente a picada que nos levava à água e ao fundo o capim verdejante que nos indicou que ali havia água. Para poente a estrada que nos levava à estrada a São Salvador e a Cuimba.
O posto de observação e de meditação
Nada de novo. Desci, fui dar uma volta, conversar com as sentinelas e depois sentei-me na caserna a ler os restos de um jornal do puto que veio a embrulhar uma encomenda de um colega. Sempre a mesma coisa. O acampamento estava calmo, os militares que não estavam a trabalhar recolhiam às casernas, onde o calor era menos. Calmo demais para o meu gosto. A cantina estava aberta, mas sem clientela. O pelotão do reabastecimento já devia ter chegado. Talvez um furo, ou coisa parecida, os tenha atrasado. Oxalá!
Ângelo Ribau
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