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É tarde. Olho o relógio. 02-15 Horas da madrugada. Vou-me deitar!
Tinha estado a reler parte dos meus escritos, sobre os tempos idos, da guerra do Ultramar, e deitei-me com aqueles pensamentos.
A meu lado a minha mulher dormia descansada. Nessa noite os seus pensamentos estariam voltados para outro lado, deixando-a descansada.
Adormeci também.
Senti-me calmo. Demasiadamente calmo. Só sei que adormeci, nada mais.
No dia seguinte fui com minha mulher pôr flores na campa dos meus sogros. Ao menos fazia-lhe companhia. Ela ficou a enfeitar e eu pus-me a passear pelo cemitério, lendo as lápides das diversas campas.
Olha, ia pensando ao ler mais uma: este já cá está, e fulano, e sicrano também. Eram rapazes das minhas idades, andaram comigo na escola, e já cá estão…
Percorri diversos talhões do cemitério, vi campas rasas dos menos afortunados, até campas luxuosas daqueles cujos descendentes tiveram posses e vaidade suficiente, para lhas mandarem fazer.
As campas mais luxuosas eram as mais antigas.
Por ali andava eu a consumir o meu tempo. Era sábado e não havia pressa.
Uma campa desmazelada, chamou-me a atenção:
- Fulano…. Soldado Paraquedista nº…. Falecido em combate em Angola -1964.
Puxei pela cabeça um tanto aereamente, e cheguei à conclusão que conhecia os pais do soldado.
Eu tinha regressado havia uma meia dúzia de meses do Ultramar e recordo-me até de ter assistido ao enterro do corpo, depois de transladado de Angola.
E a lembrança avivou-se-me. Foi um dia à tarde!
A urna tinha chegado com os restos mortais do soldado, num carro militar. Perto da campa já aberta, estava um destacamento de militares do R.I. nº 10, que prestaria as honras militares!
No cemitério, muita gente! Por curiosidade, ou para prestar a sua homenagem a um filho da terra, que tinha falecido na guerra de Angola, não sei!
O destacamento militar cumpriu o seu serviço. Ouviram-se os tiros da ordem, e os militares dispersaram em silêncio. Era esse o motivo porque ali tinham ido. Possivelmente até desconheciam o “homenageado”!
Aqueles tiros despertaram em mim tempos idos, mas que teimam, de vez em quando em irromper, sem que consiga ter “mão neles”.
Foi em São Salvador do Congo. Fomos dar campa condigna a quatro companheiros nossos, mortos em combate, a quem prestámos a homenagem fúnebre. Mas estes eram nossos companheiros. Que será feito deles passados que são quarenta e quatro anos…
Os do R.I.nº 10 prestaram homenagem a um desconhecido!
Absorto nestes pensamentos, ouço choros para os lados da campa, olho e vejo uma mulher abraçada ao caixão chorando:
- Meu menino, meu filho, a mãe está aqui…
(como a querer dar protecção ao seu filho que iria finalmente ter o descanso eterno)
Era assim que as mães respondiam aos bebés quando estavam a lavar as suas fraldinhas e eles acordando e não as vendo, começavam a chorar.
Os militares afastaram-se rapidamente.
As pessoas iam-se retirando, deixando aquele cemitério quase vazio. Só se viam os familiares mais chegados junto da campa.
O coveiro esperava respeitosamente, até que familiares retiraram aquela mãe, do sofrimento em que se encontrava.
A urna foi descida para a cova, e à primeira pá de terra que bateu na urna, ouvi aquele som lugubre…
- Oh homem. Acorda. Gritou-me a minha mulher! Estás todo a tremer e a suar. Estiveste outra vez a sonhar, não foi?
Ela acendeu a luz, eu sentei-me na cama, tentando localizar-me.
- Pelos vistos estive…
- Vai tomar um banho a ver se descansas! Fui.
A água que começou a sair do chuveiro, fria, acordou-me. Depois amornou, e eu senti-me bem. Estive ali até acordar completamente. Enxuguei-me e fui deita-me.
Antes de conseguir adormecer, pensei no sonho que tinha tido.
Os momentos maus, vêm sempre ao de cima. Infelizmente…
Ângelo Ribau
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