Terça-feira, 08.12.09

O T I R O

                                                                          

 

 

                                                                          

O  Rbau, nas suas memórias, descreveu o nosso batismo de fogo, que aconteceu ainda na deslocação para Pangala, ao passarmos por uma ponte já depois de Cuimba.  Não é dos tiros recebidos e dados nessa altura que vos quero falar.

 

Quando chegámos a Pangala, encontrámos apenas uma casa inacabada rodeada de capim bem alto e já seco.  Para passar a noite utilizámos o método dos colonos americanos na sua passagem pelos territórios indios;  carros postos

em circulo e o pessoal a dormir dentro.  Colocaram-se sentinelas em vários pontos com os sargentos a fazerem ronda aos pares.  fFz par com o Ribau e só me lembro de ouvir uns estalidos parecidos com uma tesoura  ao cortar arame. suficiente para ficar assustado.  No dia seguinte, tratámos de limpar o terreno para instalar as tendas.   Os sargentos ficaram numa barraca de posto de socorros (éramos 11). Quando mudámos, quatro meses depois, vimos uma cobra a sair de lá.  Enquanto tratávamos da instalação, um pelotão (creio que foi o 2º.) foi procurar água, uma preocupação que nos acompanhou todo o tempo que permanecemos em Pangala.  O 3º, saiu de patrulha (a primeira) para o mato, saida que durou dois dias. Dormimos em pleno mato num pequeno planalto sem qualquer árvore.  Recordo-me de quando o dia raiou, termos avistado na encosta do monte ao lado um bando de gazelas que pastavam.  Demos alguns tiros só para as ver saltar.  

 

Chegados ao acampamento, soubemos que tinha sido descoberto água MAS TINHAMOS que construir um acesso pois a fonte ficava ao fundo duma ravina onde só se chegava a pé. 

 

Naquela manhã, com o outro pelotão (2º?), dirigimo-nos para o local.  Iamos armados e como ainda não sabíamos nada dos terroristas e para não ser surpreendido levava a FBP (aquela porcaria de arma) com a culatra puxada atrás, pronta a disparar.  Quando saltei do carro ao verificar a posição

em que levava a arma e já mais confiante, com a mão levei a culatra à frente.; ouviu-se um tiro.  Tínha-me esquecido de tirar o carregador.   Assustado, olhei para os soldados que estavam ao meu lado e perguhtei –alguém está ferido?.  Não, responderam todos.  Ia a dar um passo e fui ao chão.  Tinha sido eu o atingido.  Ainda estou por perceber como consegui dar um tiro na minha virilha.

 

Miranda

 

publicado por gatobranco às 15:50 | link do post | comentar | ver comentários (5)
Segunda-feira, 07.12.09

S T R E S S

 

 
 
Teve dificuldade em acertar com a chave na ranhura da fechadura, abriu a porta desabrida, fechou-a com estrondo e encarou a anciã que a olhava desgostosa segurando ao colo uma criança de tenra idade.
- Então, querida? -- Murmurou a senhora a medo.
A jovem, esquálida, macilenta, rosto cadavérico onde só os olhos brilhavam inquietos, respondeu enfurecida:
- Então? Então, o quê? Como se não soubesse! Sempre a mesma coisa… Válium para a frente, em doses cada vez mais fortes. Qualquer dia já nem me posso mexer. Sou para aqui uma morta – viva sem forças para nada! No autocarro, com as mãos a tremerem, nem encontrava as moedas. Caiu-me tudo das mãos… toda a gente gozou comigo…Ah! Se eu pudesse conduzir! – Enterrou os dedos no cabelo descuidado, puxou-o violentamente como se pretendesse arrancá-lo e prosseguiu – sabe a melhor, mãe? Quer saber? O médico queria internar-me, pôr-me a dormir uma semana! Como se eu pudesse! E a vida, quem a faz!?...
A velha senhora, com olhos marejados, embalando a criança que apertava ao peito, interrompeu-a:
- Então, filha! Se o senhor doutor diz que o melhor é internar-te, deves aceitar! Ele só quer o teu bem, sabes que é nosso amigo… eu tomo conta da menina, faço a lida da casa…
-Nunca, eu não estou maluca, os malucos é que se põem a dormir. Não estou maluca, ouviu? — Terminou num grito de histeria que reverberou nas paredes da sala e assustou a criança que começou a chorar.
- Cale-me essa criança! Já nem a posso ouvir!
Endurecendo a voz e fuzilando-a com os olhos, a visada admoestou-a:
- Estás a ultrapassar os limites. É tua filha, não tem culpa de ter vindo ao mundo, não a podes culpar de nada! Sai daqui, vai lá para dentro, toma um comprimido, vê se dormes, pobre de ti!
Encaminhou-se para o quarto resmungando “Um comprimido, pois um comprimido para ficar ainda mais aparvalhada…”
Estendida de borco sobre a cama, encarou a fotografia de um jovem que lhe sorria. Puxou-a para si, apertou-a ao peito e chorou.
Sentada na cama, continuou a embalar a moldura com a fotografia. Largou-a e viu-a resvalar para o tapete. Debruçada, invectivou a imagem emoldurada:
- Trinta e quatro dias, contados um a um… e nem uma palavra! Por quê? Por quê! Morreste?... Tu prometeste!...
Levantou-se num repente quase pisando a moldura e dirigiu-se para uma pequena mesa rente à parede. Pegou num frasco de comprimidos e com ele apertado na mão, os nós dos dedos brancos do esforço, encarando o espelho, argumentou:
- Querem-me a dormir, é? Pois faço-vos a vontade! – Despejou alguns comprimidos na palma da mão, juntou-lhe mais uns poucos e, encarando a imagem do espelho, continuou – pois vou dormir, muito!...
Com a mão cheia de comprimidos rente aos lábios, um olhar triste, procurou a fotografia tombada no tapete e mirou-a longamente.
Num repente, atirou a mão cheia de comprimidos contra a parede e ajoelhada no chão recuperou a fotografia que apertou contra o peito com um grito lancinante:
--Maldita guerra! Maldita! Maldita…
 
J. Eduardo Tendeiro JAN70 (revisto em DEZ de 09)
publicado por gatobranco às 19:31 | link do post | comentar | ver comentários (3)

M Ã E

Vv

 
 
 
    
 
 
É tarde. Olho o relógio. 02-15 Horas da madrugada. Vou-me deitar!
Tinha estado a reler parte dos meus escritos, sobre os tempos idos, da guerra do Ultramar, e deitei-me com aqueles pensamentos.
A meu lado a minha mulher dormia descansada. Nessa noite os seus pensamentos estariam voltados para outro lado, deixando-a descansada.
Adormeci também.
Senti-me calmo. Demasiadamente calmo. Só sei que adormeci, nada mais.
No dia seguinte fui com minha mulher pôr flores na campa dos meus sogros. Ao menos fazia-lhe companhia. Ela ficou a enfeitar e eu pus-me a passear pelo cemitério, lendo as lápides das diversas campas.
Olha, ia pensando ao ler mais uma: este já cá está, e fulano, e sicrano também. Eram rapazes das minhas idades, andaram comigo na escola, e já cá estão…
Percorri diversos talhões do cemitério, vi campas rasas dos menos afortunados, até campas luxuosas daqueles cujos descendentes tiveram posses e vaidade suficiente, para lhas mandarem fazer.
As campas mais luxuosas eram as mais antigas.
Por ali andava eu a consumir o meu tempo. Era sábado e não havia pressa.
Uma campa desmazelada, chamou-me a atenção:
- Fulano…. Soldado Paraquedista nº…. Falecido em combate em Angola -1964.
Puxei pela cabeça um tanto aereamente, e cheguei à conclusão que conhecia os pais do soldado.
Eu tinha regressado havia uma meia dúzia de meses do Ultramar e recordo-me até de ter assistido ao enterro do corpo, depois de transladado de Angola.
E a lembrança avivou-se-me. Foi um dia à tarde!
A urna tinha chegado com os restos mortais do soldado, num carro militar. Perto da campa já aberta, estava um destacamento de militares do R.I. nº 10, que prestaria as honras militares!
No cemitério, muita gente! Por curiosidade, ou para prestar a sua homenagem a um filho da terra, que tinha falecido na guerra de Angola, não sei!
O destacamento militar cumpriu o seu serviço. Ouviram-se os tiros da ordem, e os militares dispersaram em silêncio. Era esse o motivo porque ali tinham ido. Possivelmente até desconheciam o “homenageado”!
Aqueles tiros despertaram em mim tempos idos, mas que teimam, de vez em quando em irromper, sem que consiga ter “mão neles”.
Foi em São Salvador do Congo. Fomos dar campa condigna a quatro companheiros nossos, mortos em combate, a quem prestámos a homenagem fúnebre. Mas estes eram nossos companheiros. Que será feito deles passados que são quarenta e quatro anos…
Os do R.I.nº 10 prestaram homenagem a um desconhecido!
Absorto nestes pensamentos, ouço choros para os lados da campa, olho e vejo uma mulher abraçada ao caixão chorando:
- Meu menino, meu filho, a mãe está aqui…
(como a querer dar protecção ao seu filho que iria finalmente ter o descanso eterno)
Era assim que as mães respondiam aos bebés quando estavam a lavar as suas fraldinhas e eles acordando e não as vendo, começavam a chorar.
Os militares afastaram-se rapidamente.
As pessoas iam-se retirando, deixando aquele cemitério quase vazio. Só se viam os familiares mais chegados junto da campa.
O coveiro esperava respeitosamente, até que familiares retiraram aquela mãe, do sofrimento em que se encontrava.
A urna foi descida para a cova, e à primeira pá de terra que bateu na urna, ouvi aquele som lugubre…
- Oh homem. Acorda. Gritou-me a minha mulher! Estás todo a tremer e a suar. Estiveste outra vez a sonhar, não foi?
Ela acendeu a luz, eu sentei-me na cama, tentando localizar-me.
- Pelos vistos estive…
- Vai tomar um banho a ver se descansas! Fui.
A água que começou a sair do chuveiro, fria, acordou-me. Depois amornou, e eu senti-me bem. Estive ali até acordar completamente. Enxuguei-me e fui deita-me.
Antes de conseguir adormecer, pensei no sonho que tinha tido.
Os momentos maus, vêm sempre ao de cima. Infelizmente…
 
Ângelo Ribau
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

v

publicado por gatobranco às 19:11 | link do post | comentar | ver comentários (1)

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