Quinta-feira, 17.03.11

ZÉ-BUM

 

Ia para um mês que tinha sido colocada naquela pequena vila.

O posto de correios a seu cargo, pouco trabalho lhe dava e isso não a preocupava, pelo contrário, deixava-lhe muito tempo livre para se dedicar aos seus estudos. Ambicionava ser advogada, saber leis, usá-las em favor do próximo. Imaginava-se muitas vezes a versão feminina de Perri Mason, maravilhando o tribunal com as suas deduções, ilibando falsos culpados, castigando os que tinham errado.

A pensão onde se alojara, com pretensões a estalagem não era barata e tinha o inconveniente de ficar no outro extremo da vila. Mas a travessia diária daquelas ruas sossegadas permitia-lhe um maior contacto com a população, não se ficando pelos conhecimentos que o balcão lhe possibilitava.

Conhecia já a senhora Ascensão que, nos seus vigorosos setenta anos, ia à fonte duas vezes por dia desprezando a água da rede que ela sabia contaminada e cheia de drogas para lhe tirarem o mau gosto e cheiro. Vencida a pequena dificuldade de pôr o cântaro de barro na cabeça, de costas erectas marchava em passo firme e dava-se ao luxo de rodar a cabeça para a cumprimentar “Olá, Menina” e o cântaro, obediente rodava também com a cabeça da senhora Ascensão e inclinava-se numa vénia de vertigem acompanhando o cumprimento.

No Café Central, onde se obrigava a tomar a bica duas vezes por dia, quando a freguesia não era desmesurada, isto é, não excedia as cinco ou seis pessoas distribuídas pelas quatro mesas do café principal da vila, tagarelava ao balcão com a filha do proprietário viúvo, a menina Moreira que, pelo seu grau de exigência na aceitação de um namorado, estava já fadada pela vox populi para solteirona.Por ela sabia as novidades e intrigas daquele microcosmo perdido em terras da beira, perto da fronteira com Espanha, os serões do senhor prior sempre pronto para um bom jantar nas casas de nome mais sonante, os discursos do Capitão Martelo, eterno candidato a presidente da junta, as desavenças dos irmãos Serra pela partilha de terrenos e águas que tinham em abundância, os procedimentos do cabo João que nunca autuara um rico… As situações mais graves, os mexericos de saias, a menina Moreira guardava-as para as ocasiões mais íntimas, muitas vezes à porta do café, olhando atenta para ambos os lados da rua, espiando a aproximação de algum ouvido indiscreto. Era a altura em que a D. Isabel não era poupada nas suas saídas mensais (sabe-se lá para onde), a afilhada do senhor prior, filha da senhora Maria que zelava pela casa paroquial e pelas roupas da igreja, aquela cabecinha levantada que dava nas vistas no colégio da vila, já se falou dela com o carteiro…

No Jardim dos Plátanos que também atravessava diariamente, era frequente encontrar no primeiro banco o senhor capitão que se levantava e com um estalar de calcanhares a cumprimentava com voz de quem estava a dar ordens a um batalhão. Pouco a pouco, foi conhecendo as pessoas características da terra. Mas havia uma que a deixava intrigada e propôs-se falar dela à já sua amiga Moreira.

Era um sujeito com talvez cinquenta anos ou um pouco mais, sisudo, barba cerrada e frequentemente de olhos incandescentes como carvões soprados por vento forte. Sentado num banco do largo principal, encostado na ombreira duma porta ou caminhando cabisbaixo, parecia não se aperceber de ninguém ao seu redor ou se fixava alguém fazia-o com olhos vazios de reconhecimento ou qualquer emoção.

Foi numa tarde de fins de Agosto que a chefe dos correios daquela pequena vila, passando pelo café central, encontrou a filha do proprietário sozinha, vendo televisão, e quis saber quem era aquela figura que a intrigava.

“É um triste que para ali anda, coitado” – respondeu a interpelada e prosseguiu – “é um ex-combatente da guerra de Angola. Foi apanhado por uma mina que matou muita gente. Esteve em coma vários dias com ferimentos graves. Já reparou que ele coxeia? Vive obsecado com aquele acontecimento. Dizem que é um trauma de guerra que o vai acompanhar à cova. Todos temos muita pena dele, mas vive afastado de nós. Era um belo rapaz, eu lembro-me dele.Bom estudante, estava no segundo ano de Direito sem nunca perder um ano. Quando nas férias vinha até cá, punha-nos as cabeças à roda. Brincava com todas sem nunca se fixar em nenhuma... Foi uma pena. Quando foi mobilizado e se veio despedir da família, todas chorámos por ele que se fartou de brincar e afirmar que, quando voltasse, casava com todas. Foi uma pena! – Repetiu com olhos húmidos – Dizem que aquela barba esconde as cicatrizes que tem na cara. Normalmente é pacífico, retraído, raramente fala, mas de vez em quando tem ataques e revive o dia em que foi ferido. Todos o tratam por Zé-Bum. Eu acho cruel .”

“Zé-Bum? Que nome esquisito!”

“Eu acho cruel porque ele não tem culpa... vem aí gente,com o senhor Capitão, tenho que atendê-los... depois explico melhor.”

A senhora dos correios, com muita gente a tratava, foi-se caminho da sua pensão com pretensões a estalagem, meditando naquela figura triste e cabisbaixa.

Dias depois, atendendo um cliente e com outros aguardando , o ex-combatente assomou à porta, correu os olhos pelos presentes e ficou estático de olhos vazios.

“Vens comprar selos para escreveres à namorada?” – ironizou uma senhora de meia idade, acrescentando – “É ela que te vai cortar a barba?”

O visado encheu o peito de ar e gritou:

“Buuum! É assim que uma mina faz... depois são braços, pernas, bocados de corpos que voam por todos os lados, sangue, muito sangue, e aquele cheiro.”..-- com um soluço desapareceu na ombreira da porta.

Na sala fez-se um silêncio de morte, pesado que se prolongou até que a mesma senhora que falara antes o quebrou:

“O tipo é doido de todo! E nós temos que aturá-lo! Devia mas era estar internado, ora o estúpido!”...

Vários pares de olhos vararam-na e a chefe, atrás do balcão, meneando a cabeça, lívida, carimbou com violência desmedida a carta que tinha acabado de estampilhar.

 

 J.Eduardo Tendeiro

publicado por gatobranco às 18:57 | link do post | comentar | ver comentários (2)

TININHA

 

Naquele tempo de pouco trabalho, em Luanda só fazia reforços de quando em vez. Habitava num dos apartamentos do terceiro andar do edificio da Paris.

No trezentos e vinte morava uma jovem familia constituida pelo casal e por um filho de, talvez, nove ou dez anos.

Num dia em que subira ao terraço, no quinto andar, para fazer umas fotografias de experiência de luminosidade, encontrei lá D.Albertina, Tininha para os amigos, que pendurava roupa levada numa bacia de esmalte. O filho deambulava pelo terraço e acercou-se de mim, atraído pela máquina fotogrfica.

O meu pai tambem tira retratos, mas a máquina dele é mais pequena”. Eu estava a fazer ensaios com uma Reflex.

Que estás a fazer? - questionou.

Expliquei-lhe que procedia a ensaios, tive que lhe descrever o que era um ensaio até a mãe intervir:

Deixa o senhor, não vês que o estás a maçar?”

Insurgi-me delicadamente e pedi-lhe autorização para fotografar a criança. Anuiu com um encolher de ombros.

Enquanto o fotografava, reparou na minha farda amarela e quis saber:

“És tropa?”

Concordei, mudei de ângulo e prossegui com o meu trabalho.

Andas na guerra?”

Ando...”

Estiveste lá no Norte?”

Estive”. Começava a não gostar do interrogatório, tanto mais que notava sinais de perturbação emocional na criança, mas ela voltava carga:

Davas muitos tiros?”

Quando era preciso”, respondi reticente e preocupado.

Registei uma última pose e dispus-me a bater em retirada mas ele não desarmou e com voz embargada, muito próxima do falsete, inquiriu:

Mataste muitos pretos?”

A intervenção da mãe poupou-me o ónus da resposta:

Desculpe-o!”--e para o filho, estendendo-lhe a bacia vazia-- “Toma e vai chamar o elevador”

Vendo-o afastar-se, D. Tininha renovou as desculpas e justificou:

É que tivemos que fugir da nossa fazenda debaixo de fogo de terroristas negros. O ódio dele pelos negros vem daí. Desculpe-o sim?"

 A mão dela no meu braço tremia violentamente.

 

J. Eduardo Tendeiro

publicado por gatobranco às 18:27 | link do post | comentar
Quarta-feira, 16.03.11

O Ti António da Bicha

                                    “  O Ti António da Bicha”

 

 

Magro, escanzelado, vestia uns trapos, que mesmo como trapos já haviam conhecido melhores dias, com o seu chapéu roto, mais parecia um espantalho das searas, do que um ser humano que Deus ao mundo tenha posto

Era assim o Ti António da Bicha, um pobre pedinte que, quando eu era ainda moço, dos meus sete, oito anos, aparecia na nossa casa, a pedir esmola.

 Batia ao portão, abria a aldraba – naquele tempo não era necessário fechar as portas à chave – e pedia uma esmolinha por amor de Deus, para lhe matar a fome, com a cara triste de pedinte como era conveniente!

 

Nós, os filhos da casa tínhamos por este homem, não sei se respeito, se mêdo.

- Vai ao portão ver quem é, diz a minha mãe!

Fui.

- Mãe, é o Ti António da Bicha a pedir esmola!

- Ele que espere um pouco e tu vem cá.

Cheguei à casa do forno onde minha mãe tinha já posto sobre a mesa um naco de boroa e duas batatas. Esperei. A minha mãe veio do lado da salgadeira trazendo na mão um pedaço de toucinho salgado.

- Leva isto ao pobre. Estamos em vésperas de Natal e ele tem de ter com que matar a fome!

Fui.

 

Ao entregar a esmola, notei que deu uma dentada na boroa, guardando o resto num dos lados do saco. As batatas guardou-as noutro.

Ao receber o toucinho, olhou-o, como duvidando da dádiva que estava a receber. Guardou-o com cuidado, olhou-me e sorriu. Foi a única vez que viaquele rosto sorrir.

 

- Deus vos dê saúde e sorte para o poderem ganhar, foi o agradecimento que lhe ouvi, ao mesmo tempo que murmurava uma Ave-maria, que acabaria logo que eu deixasse de o ouvir!

 

E seguiu a sua viajem para o portão próximo, o do Vizinho Sarabando.

 

Eu estava descansado. Sentia calor deixei-me ficar de olhos fechados, pensando no que se tinha passado. Acordei calmamente olhando em redor, sem compreender. Estava deitado na minha cama, na nossa caserna em Pangala. Tinha estado a sonhar com um caso passado há tantos anos…

Tentei coordenar as minhas ideias. O caso era real. Mas passados tantos anos, era como se o acabasse de o viver.

Os meus companheiros dormiam era ainda cedo. Levantei-me sem fazer ruído e fui tomar o fresco da manhã para coordenar ideias.

Ah! Pois é, além de amanhã é a noite de ceia, pensei. Como é que a cabeça foi buscar esse “registo”, com mais de quinze anos de existência!

 

 

 

 

Ângelo Ribau

 

publicado por gatobranco às 18:35 | link do post | comentar

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