Segunda-feira, 25.07.11

"REQUIESCAT IN PACE"

REQUIESCAT IN PACE  

              

               (1936/01/21 - 2011/06/26)

 

No horizonte natural da vida, a Morte prefigura-se sem excepções. Desejada, temida. misericordiosa, inesperada, aguardada com sobressalto ou alívio, a Morte atinge os que leva consigo, mas também familiares e amigos.

Familiares e amigos do Padre Arnaldo, encontramo-nos de luto. A Morte levou-o inesperadamente não lhe concedendo mais margem de vida, para que pudéssemos ainda abraçá-lo e sentir em si o pulsar de um amigo.

Mitiga a nossa dor o facto de o sabermos um homem de Fé.

 

“Eu tenho Fé e por isso estou aqui junto de vós”.

Palavras do Padre José Arnaldo da Silva Monteiro Fernandes, Capelão do Batalhão de Caçadores Especiais nº 357 que serviu em Angola, 62/64.

Palavras que proferiu no final de uma longa diatribe com um grupo de milicianos da CCE 306, aquando de uma visita sua àquela unidade aquartelada em Pangala, no Norte de Angola.

O serão ia longo, o gerador tinha sido desligado mas, à luz de um petromax recuperado de uma sanzala abandonada, o Capelão seroava connosco. Alguns, mais cáusticos, ou mais desesperados, confrontavam-no com o seu Deus, o Deus de amor e misericórdia que ele pregava, mas que consentia aquela guerra em que estávamos envolvidos e nela morríamos, que matava indiscriminadamente o inimigo, fosse combatente, mulher ou criança. Por que não fazia Ele connosco como tinha feito com Moisés, separando águas para nós passarmos incólumes e fechando-as sobre os que nos acossavam.?..

Cansado, triste, com a humildade que lhe era característica, fechando o serão, proferiu:

“Quem sou eu para comentar ou explicar os desígnios de Deus? Eu tenho Fé, acredito Nele e, por isso, estou aqui junto de vós”[1].

O nosso encontro “pós-guerra”, particularmente o meu, tinha lugar no encontro anual dos militares do Batalhão.

Connosco celebrava a Eucaristia, encomendava a Deus os que aquele ano já não estavam entre nós e confraternizávamos. Bem disposto, circulava pelas mesas, recordando o nome de um, comentando com outro alguma viagem mais atribulada, avivando qualquer episódio que a memória esfumara já.

Tive o privilégio de o abraçar pela última vez no Encontro de 2010.

 

Regressado de Angola, paroquiou em Vilar de Mouros.

Novas comissões levaram-no  para África, integrado em tropas operacionais. Entre duas comissões, D. António dos Reis Rodrigues, Bispo das Forças Armadas, chamou-o para Lisboa, para o seu secretariado.

As Unidades de Figueira da Foz e Águeda (Escola de Sargentos) tiveram o privilégio dos seus serviços religiosos.

Regressado em 75 da sua última comissão de serviço em África, fez uma breve passagem pelo R.I.P. Do Porto rumou para o Q. General. Daí transitou para a PSP, onde permaneceu até 2000.

Desde esse ano até à data do seu passamento, desempenhou funções no Tribunal Eclesiástico, como Juiz[2]

Segundo o seu sobrinho  Daniel, no dia 26 de Junho, “ Vi-o sair da porta de casa da minha avó para nunca mais voltar.Perdi naquele dia um Pai e o País perdeu um Homem Bom”.

Foi a sepultar na paróquia de S. Cláudio de Barco, Guimarães, ao lado de seus pais.

                                         Cadaval,2010 

                   

Ciente de que Deus te chamou para junto de Si, P. Arnaldo, pede-Lhe que seja misericordioso para com os que, no final da caminhada, nos vamos apagando.

                                                                                                                          

 

J. Eduardo Tendeiro – CCE 306

Angola, 1962/64



[1]    In “Notas e apontamentos” do autor

 

[2]    Dados biográficos fornecidos pelo seu sobrinho João Daniel

publicado por gatobranco às 11:22 | link do post | comentar | ver comentários (1)
Sábado, 23.07.11

ESTRELA

 

 

 

O sino, roufenho e dolente, no velho campanário da igreja daquela envelhecida aldeia bem no centro da BeiraAlta, anunciou Morte.

Na horta, Maria Delores, ergueu-se de entre as couves altas, atenta confirmou a natureza do toque e, para o seu companheiro de meio
século, inquiriu:

-- Quem terá sido, sabes?

Com um encolher de ombros, o visado respondeu:

-- Quando viemos para cá, ainda não corria nada. Deve ser alguém de cá que estava fora.

Resignados, retomaram as suastarefas com a promessa de, quando regressassem, passarem na casa do sacristão,se antes não circulasse por ali alguém com a notícia.

O sino calou-se talvez para anunciar as nove horas que repetiu pouco depois e remeteu-se ao mutismo que quebraria meia hora depois com uma badalada seca.

 

Na Internet, no facebook, no telefone e em mensagens de telemóvel, a notícia cruzou o país, inesperada: “O Estrela Morreu”.

 

Começaram a chegar cedo, na manhã do dia seguinte. O sol, num acto de colaboração, varrera as nuvens da noite e resplandecia nos velhos telhados, ainda molhados. No granito das vetustas paredes, pontos mágicos brilhavam numa miríade de cintilações de boas vindas aos que se iam agrupando no largo da capela mortuária. O primeiro foi o Serra,o cabo Serra perpétuo guardião do guião da Companhia de Caçadores Especiais.
Pouco depois, no mesmo carro chegaram os dois sargentos do pelotão que, com o Estrela, tinham enfrentado muitas dificuldades e partilhado raras alegrias.
Orientados pelo guião da Companhia, já erguido acima das cabeças, juntaram-se ao cabo Serra. Os abraços foram discretos e as palavras murmuradas em surdina.
O padre Alves, do Batalhão, não se demorou nos cumprimentos, esteve alguns momentos na capela e demandou o grupo que ia crescendo. O alferes Santos chegou sozinho num “topo de gama”. Estava bem na vida, mas não deixou de corresponderao primeiro toque de rebate. Noutro carro, com a lotação esgotada, compareceram elementos da Companhia e um escriturário do batalhão. O cabo cifrador e o sargento de transmissões chegaram em caravana.

Considerando encontrarem-se já em número representativo, entraram na pequena capela, cercaram o féretro e sob orientação do padre Alves, rezaram em coro. Vozes fortes, tocadas pela amargura do amigo perdido, fizeram vibrar as paredes da capela e encheram de lágrimas os olhos dos presentes. Depois, em fila, cumpriram o ritual dos pêsames à Mãe e irmão do Estrela que, com o seu camuflado coçado de dois anos de vicissitudes –exigência testamentária do defunto – parecia sorrir. No peito, do lado esquerdo, uma estrela pouco menor que a palma da mão, luzia as suas cinco pontas.

Terminado o ritual, voltaram a cercar o corpo do Estrela. Fixando-o, o então sargento miliciano   Carlos, não conteve um arrepio: fora assim, fardados, que dois amigos tinham ficado lá, enterrados num cemitério provavelmente já vandalizado ou perdido debaixo do capim alto.

O pároco da freguesia chegou com o sacristão tilintando a campainha, trocou breves palavras com o padre Alves, assentiu com a cabeça e oito ex-combatentes, depois de colocada a tampa docaixão, carregaram-no em ombros para a carreta desprezando o carro funerário preparado para a trasladação do corpo para a igreja e foram eles que puxando, empurrando e ladeando o encaminharam para a estrada que os levaria ao destino.

No templo, com características românicas restaurado no século XIX conforme constava da lápide ao lado da porta, os já raros habitantes da envelhecida aldeia ocupavam pouco mais que metade dos bancos. Um frémito de emoção perpassou pelos presentes quando aquele grupo de anciãos, uns carregando em ombros o féretro, outros, hirtos,  ladeando-o, em passo lento, atravessaram a igreja e depositaram o corpo no cavalete previamente montado, iluminado por falsa velas que tremeluziam  como se fossem reais.

Concelebrando com o padre Alves, o pároco esmerou-se nas exéquias de circunstância. No momento próprio, o ex-alferes Santos, procedeu ao elogio fúnebre enumerando as características do defunto, afirmando que ele tinha uma excelente formação moral reconhecida por todos, abnegado até ao sacrifício pelo próximo e, para ilustrar, contou um episódio de guerra que, segundo o orador, não podia calar.

“Quando falo em abnegação e entrega ao próximo, não exagero. Os que aqui estão e com ele conviveram naqueles dias difíceis sabem-no bem e eu, muito melhor que todos. Se estou aqui vivo, a ele o devo. Quando percorríamos a pé uma estrada, à frente das viaturas, pesquisando minas, o Estrela e eu íamos à frente atentos a qualquer sinal na estrada que nos pudesse alertar para aquele tremendo perigo. De súbito, sem qualquer aviso, o Estrela atirou-se contra mim, derrubou-me e ambos rolámos no pó da picada com pretensões de estrada…”

O ex-militar parou, não por efeito retórico mas porque a voz, embargada, se lhe tinha esgotado.

Retomou o discurso sem que o mínimo sussurro tivesse manchado aquela pausa:

“Desculpem. Já lá vão quase cinquenta anos e ainda não consigo falar isto sem me emocionar. Sabem por que é que ele me empurrou e derrubou? Porque se apercebeu que eu ia pisar uma mina que não tinha visto e que ele detectara. Sem tempo para me prevenir, arriscandoa própria vida pois podia ter caído sobre a mina, não hesitou em saltar e me empurrar, salvando-me a vida”--Virando-se para o corpo exposto, concluiu –“Obrigado Estrela”

Alguém bateu palmas timidamente mas ateou o rastilho de uma ovação que, provavelmente, pela primeira vez fez vibrar aquelas paredes centenárias.

No grupo dos ex-militares, o Costa sussurrou: “Também podia ter referido que me carregou ao longo de vários quilómetros quando parti a perna”.

-- E quando ele ficou com o meu serviço, quando me deu o paludismo, só para não alterar a escala? – Comentou entre dentes o Aires.

--Bom amigo que nós perdemos,concluiu o do guião.

Terminada a missa, os funcionários da agência funerária limitaram-se a cerrar a urna, porque aqueles anciãos amigos do Estrela, não lhes consentiram qualquer outro movimento. Eles próprios a carregaram  para a carreta e, depois de acomodada a quase centenária mãe do Estrela no carro funerário,
puxando a carreta, atravessaram a aldeia em direcção ao cemitério ladeados pelos irmãos de duas confrarias com as suas opas vermelhas e azuis, a bandeira nacional cobrindo o caixão.

Ali aguardava-os a representação da liga dos Combatentes com a respectiva bandeira, o destacamento da unidade mais próxima e mais dois ex-combatentes que, atrasados tinham rumado directamente ao cemitério. Um deles, o corneteiro da companhia, com breves piscar de olhos, discretamente, mostrou a pequena e reluzente corneta.

De novo ao ombro dos amigos, o caixão do Estrela serpenteou entre algumas campas até atingir o monte de terra molhada que anunciava a cova recém aberta.

No céu, a nascente, num acto de recolhimento, nuvens negras entretanto acumuladas, taparam o sol.

 Encomendado a Deus e aos Santos, uma vez mais o hissope pela mão do pároco e do padre Alves aspergiu a urna e a cova, o destacamento procedeu à salva de tiros e, quando o caixão baixava à cova o ex-corneteiro arrepiou os presentes com os seus toques de sentido e de silêncio. Lágrimas deslizaram imparáveis buscando as rugas daqueles rostos envelhecidos e crispados.  Perfilados, imóveis ignoraram-nas, olhos fixos no amigo que a terra, pouco a pouco tragava.

Discretamente retiraram-se, dando lugar à família e demais pessoas da aldeia. Reunidos para lá da estrada, frente à porta do cemitério, abraçaram-se os que ainda o não tinham feito, o ex-alferes alegando uma viagem de avião inadiável, encaminhou-se apressado para o largo da capela onde tinham deixado as viaturas, mas os restantes conversaram recordações de guerra, dos dias tristes do norte de Angola.

O Meireles, meneando a cabeça calva, afirmou:

-- Nunca pensei que ele guardasse tanto tempo aquela estrela! Lembram-se onde  a encontrou?

O Costa não teve dificuldade em responder:

 --Foi naquela malfadada operação de cerco e assalto a uma sanzala vazia. Os gajos tinham dado o salto à nossa aproximação…

--Mas tramaram-se, completou o primeiro. Levámos porcos e galinhas para umas semanas, sem contar com bugigangas, até um rádio de pilhas… foi aí que o Estrela encontrou aquela estrela, talvez adorno de uma preta e a constituiu em seu amuleto. Nunca mais a largou…

-- Nem largará jamais! Levou-a consigo.

 As nuvens acasteladas anunciaram o fim da trégua e pingos esparsos salpicaram o alcatrão.    

O cabo Serra, depois de acomodar o guião no respectivo estojo, sempre prático, consultando o relógio, informou e propôs:

--Já passa do meio-dia, parece que vai chover… por que não comemos qualquer coisa antes de destroçar?

--Eu vi um restaurante aqui perto. Vamos lá? —  aliciou outro.

Todos concordaram e puseram-se a caminho das respectivas viaturas, mas o Meireles avisou:

-- Vou ver se o padre Alves quer vir connosco. Vão andando que já vos apanhamos.

Vergados não tanto pela idade como pelo desgosto do amigo inesperadamente perdido, afastaram-se do cemitério. Um pouco atrás, o Bento agoirou:

-- A seguir vou eu…

--‘tás parvo, pá!  Não me disseste que ainda há poucos dias mudaste a pilha do coração?

-- Mas olha que já não a gasto, é cá uma sisma minha.

 

Fim

 

Homenagem sentida ao Estrela, a sua Mãe e família, sejam quais forem os
seus nomes na vida real. 

 in Apontamentos

J. Eduardo Tendeiro

(Ex combatente. Angola, 62/64)

        CCE 306

 

publicado por gatobranco às 18:15 | link do post | comentar | ver comentários (4)
Segunda-feira, 18.07.11

ARROBAS

 

  

 

 

 

Arrobas ou Arroba-arroba, a sua designação de correio electónico provinha de uma brincadeira de amigos : quando se propôs mudar de endereço electrónico e pediu sugestões, a maioria deles, tendo em consideração as suas seis arrobas de peso mal distribuídas por um metro e sessenta e dois de altura e fazendo ele gala nas suas arrobas, votou inevitavelmente Arrobas ou Arroba/Arroba e, com bonomia, João Carlos aceitou Arrobas.

Sem ser um viciado, a sua vida girava bastante em torno do computador. Iniciava o dia com a leitura das primeiras páginas dos jornais, lia alguns desenvolvimentos, consultava a meteorologia e, nos serviços, pesquisas e relatórios passavam inevitavalmente pelo seu computador.

À noite no isolamento do pequeno apartamento de solteiro, depois de comer a refeição que ele próprio preparava na maior parte das vezes, regressava ao computador para , com uma música de fundo do seu agrado, se dedicar à leitura e resposta das mensagens dos seus correspondentes, quase meia centena, entre eles alguns dos companheiros de armas da já distante guerra de África. Distante, mas frequentemente presente. Quando as G3 em concerto explodiam na sua cabeça faziam-no voltar aos ansiolíticos que, anos atrás, depois do regresso, tomara às mãos cheias e que o tinham tornado naquela figura rubicunda a qual, por desânimo e desleixo, aprimorara com uma alimentação desregrada.

 

De um modo geral todos cumpriam a regra de eliminar os endereços das reexpedições, mas havia uma senhora que não se dava a esse trabalho e as suas mensagens surgiam sempre antecedidas de uma longa lista de endereços. Num dia em que o número de mensagens tinha sido anormalmente baixo, o cibernauta dedicou-se à análise daquela interminável lista. Nomes exóticos, foram desfilando: Passarinho-da-ribeira, aranhiço, rosa dobrada, claralinda, preto, meudestino, guiduxa e uma infininidade de outras idiotices.Entre elas sobressaia uma lacónica m.armandinha.

Com um sorriso de prazer compôs o endereço numa nova mensagem e escreveu o texto:

"Armandinha? Gosto! Quem és tu?"

No dia seguinte a resposta aguardava-o:

"Sou a Armandinha. E tu, Arrobas, quem és?"

Deliciado, o cibernauta não tardou a responder:

"Sou o Arrobas – sorriu face à realidade – Quero saber mais coisas de ti"

A resposta demorou a chegar e quando o cibernauta quase tinha esquecido a brincadeira com "Armandinha", chegou em letra cursiva com fundo cor-de-rosa:

"Muito curioso senhor Arrobas! Mas faço-lhe a vontade. Gosto de pps com paisagens de terras distantes, viagens a países longínquos. Detesto mantras e rezas com promessas de que se fizer tantas reexpedições terei muita sorte. Detesto anedotas porcas e não aceito pornografia. Satisfeito?"

"Não! Quero saber como és. Manda-me uma foto tua".-- Digitou Arrobas.

Resposta imediata:

"Dizem que sou ingénua, mas não sou burra. Uma foto? Que garantias tens de que é minha? Pode ser a de uma amiga, de uma artista qualquer"

"Tens razão! – penitenciou-se ele – Aliás já sei muita coisa de ti, dos teus gostos, mas diz-me como és. Faz uma descrição, valeu?"

A resposta demorou:

"Não tens a menor garantia de que seja verdade, mas aí vai. Dizem que sou gira. Tenho vinte e cinco anos, não sou loira mem morena, cabelos pelos ombros, olhos castanhos. Dizem que tenho um corpinho bem feito, sou solteira, descomprometida e estou a gostar de me corresponder contigo. Agora quero eu saber como é o Arrobas."

João Carlos ficou longo tempo a olhar para o ecram, ruminando " não me digam que tenho aqui uma gaiata de doze ou treze anos a querer verbalizar uma aventura.... ou uma solteirona serôdea à pesca... cuidado, menino! Puxando para si o teclado respondeu:

"De certeza que és muito gira! Eu? – Mirando uma fotografia sua envergando um camuflado e com pistola pendente do cinto largo de lona, prosseguiu – Sou da tua idade, não sou alto, cabelo negro comprido, olhos castanhos, sessenta e sete quilos - sorriu para si -  faço desporto e gosto do teu nome: Armandinha".

Clicou no ícone Enviar e ficou a sorrir para a imagem que o vidro espelhado da janela lhe devolvia.Noventa quilos (seis arrobas), atarracado, calvo, face redonda, avermelhada, óculos de aros grossos. Gargalhou irónico.

 

Encontraram um programa de resposta imediata e ao longo de um mês trocaram futilidades, até que o cibernauta, preocupado insistiu num encontro.Receava estar a alimentar qualquer desvario de pré-adolescente.

Armandinha negou, hesitou, acabou por aceitar. Para maior facilidade de reconhecimento, ela levaria um vestido azul por baixo de um casaco branco e estaria sentada na Pastelaria Triunfo na terça feira, a partir das dezoito horas folheando uma revista de modas.

Muito antes da hora marcada, Arrobas instalou-se a uma mesa da pastelaria estrategicamente situada , permitindo-lhe abarcar toda a sala e a porta de entrada.Imaginou-se na guerra, sempre a guerra, a escolher o campo de tiro de uma emboscada.

Cinco minutos antes das dezoito, uma jovem de talvez vinte e poucos anos, vestido azul sob casaco branco, cabelos pelos ombros, elegante, silhueta perturbadora, entrou na pastelaria, correu os olhos pelas mesas, sentou-se perto da entrada e abriu na sua frente uma revista de modas femininas.

João Carlos, acoitado atrás do jornal, olhou furioso para um espelho da pastelaria que teimava em lhe devolver a imagem pouco feliz das suas seis arrobas e, empertigado, maldizendo-se e culpando a guerra, saiu sem olhar para Armandinha que, distraída, folheava negligente a sua revista de modas.

 

 

 

 

J. Eduardo Tendeiro

 

(Relato ficcionado)

8/9/10

 

publicado por gatobranco às 10:34 | link do post | comentar | ver comentários (1)
Terça-feira, 12.07.11

Mina

 

 

Manhã calma de primavera.

Andorinhas desenhavam arabescos na sua incessante procura de alimento. O azul quase transparente avivava os recortes da montanha tingida com manchas de verde.

Na varanda do nono andar de um dos prédios da periferia da cidade, um ancião, cabelos ralos, acinzentados, ventre proeminente, fazia o seu banho diário de sol. Falta de vitamina D, de cálcio, risco de fractura de coluna, da anca.

“Apanhe sol, de preferência de manhã, caminhe um pouco e tome este suplemento de cálcio que lhe vou receitar” – sorriu da sua ingenuidade. Pensava que só as mulheres, na menopausa, ficavam carentes de cálcio e vitamina D.

Virou-se de costas para o sol, fruiu a sensação de calor naquela manhã fresca, fechou os olhos e cabeceou. Era o dia de os netos irem almoçar com os avôs. O mais velho com uns pelos incipientes a ornarem-lhe o lábio superior, a contas com modificações de voz, iria crivá-lo de perguntas e, a muitas delas  teria que confessar a sua ignorância. Remetê-lo-ia para a Wikipédia ou para fontes mais específicas. O mais novo lembrar-lhe-ia pela enésima vez a projectada excursão à mata dos castanheiros…

Sonolento, à procura de apoio para a cabeça, rodou no assento expondo um flanco ao sol.

Nas obras  da nova circular da cidade, um tiro de pedreira explodiu com fragor.

Rolando para o chão, o ancião gritou “Mina!”

Desperto, olhando a varanda do seu nono andar, guindou-se para a cadeira, apertando as fontes entre as mãos trémulas. Por entre as árvores, o local do rebentamento era marcado por uma coluna de fumo negro, idêntico ao que anunciara a morte de quatro dos militares da sua companhia, lá muito longe, lá muito ao Norte.

De olhos vagueando pelo azul límpido do céu, questionou desalentado:

- Até quando, Senhor? Não basta já?

(J.Eduardo Tendeiro, Angola 62/64 CCE 306)

 

publicado por gatobranco às 11:19 | link do post | comentar | ver comentários (3)
Terça-feira, 05.07.11

O PÁRA-QUEDISTA

O Paraquedista

 

 

“Para quem chega a uma terra estranha, por muito desinibido que seja, encontrar alguém conhecido tem o efeito de uma tábua de salvação oferecida a um náufrago perdido em alto mar. O Ribau teve sorte.

Também eu me comovi com as flores e papéis que dos prédios altos da Marginal de Luanda tombavam sobre nós.Ritual de boas vindas aos jovens em quem se depositava a salvação de uma crise grave? Talvez, mas eu interrogava-me: quantos de nós não iremos a enterrar nesta terra que não é nossa, sem uma pétala em sinal de agradecimento?

Provavelmente, estávamos a recebê-las por antecipação”.

J. Eduardo Tendeiro

 

 

 

Tínhamos acabado de desembarcar e aguardávamos as viaturas militares que nos transportariam ao destino, o Campo Militar do Grafanil.

Ainda meio zonzos pelo barulho da Cidade, íamos olhando à nossa volta.

Luanda era uma cidade grande com prédios grandes, alguns de muitos andares. Havia assistência, que naquelas alturas costumava presenciar o desfile da tropa, que aplaudia pensando certamente que aquela juventude acabada de chegar seria a sua salvação. Nós olhávamos para tudo aquilo, que era novidade para nós. Um ráter de um carro que passava despertou-nos, tendo alguns de nós, por instinto, deitado a mão à arma que nos acompanhava. Depois tudo voltou à normalidade da espera e observação do ambiente que nos rodeava...

 

- Eh Ângelo… Ouvi uma voz conhecida. Olhei e vi o Fernando que era pára-quedista e se dirigia a mim. Ao aproximar-se, fez a continência. Eu era furriel miliciano e ele soldado…

- É pá deixa-te dessas paneleirices e diz-me como é isto por aqui.

- Por aqui, em Luanda é uma beleza. O pior é mais a norte, lá para os Dembos e para a fronteira. Olha o Silvério é que teve um azar…

- O que foi pá?

- Fazia parte dos pára-quedistas que foram lançados numa operação, sobre a Serra da Canda, na fronteira Norte, o pára-quedas de um colega não abriu e aí vinha ele a toda a velocidade direito ao chão. Mas bateu no Silvério e por instinto agarrou-se a ele. Sorte a sua. Aí vêem os dois pendurados num só pára-quedas (peso demais) estatelando-se os dois, primeiro numa árvore, e depois no chão. O Silvério ficou com uma perna partida e o outro com um braço.

- Onde está ele?- Perguntei.- Gostava de estar com ele!

- Estamos aquartelados na Fortaleza de Luanda. Ele está lá na enfermaria, pode ser visitado das 6 às 7 da noite.

- Diz-lhe que se eu puder passo por lá a falar com ele.

Entretanto iam chegando as viaturas, houve ordem de embarque e lá fomos ver o que era o Grafanil.

- Adeus Fernando. As melhoras para o Silvério e até à vista…

-Tchau, foi a resposta. Serão entregues.

 

Passados dois dias lá consegui arranjar tempo e dirige-me à fortaleza, fardado como convinha, o que facilitou a minha entrada e movimentos dentro da fortaleza.

Dando conhecimento ao que ia na casa da “Guarda”, fui conduzido à enfermaria onde localizei a cama do Silvério,à qual me dirigi, tendo-o encontrado com uma perna toda engessada.

- Então Silvério, digo-lhe eu, como vês é perigoso dar boleia…

- É Ângelo deixa-te de coisas! As dores na perna parece que nunca mais acabam! Mas tudo bem. Se o “gajo” não se tinha agarrado a mim, a esta hora já cá não estava…

- E agora?

- Agora tenho de aguentar, e esperar que isto se cure…

 

- A tua família está bem lá pelas Gafanhas! Agora tenho de me ir embora. Tenho de aproveitar a boleia de uma viatura militar para o Grafanil.

 

- Já sabes para onde vão?

- Não sei para onde, mas dizem – nos que é para a fronteira norte!

- Hum!!! Bem, boa sorte e poucos tiros. Qualquer dia encontramo-nos outra vez em Luanda.

- Adeus, até à vista.

 

 

Ângelo Ribau

 

 

 

 

publicado por gatobranco às 10:47 | link do post | comentar | ver comentários (1)

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