A notícia apanhou-me de surpresa e cruamente:
“Mais um que se foi!”
Conheci-o, melhor, conhecemo-nos na primeira noite da viagem para Angola.
Sem sono, angustiado, deixando para trás a Mulher e um filho que não sabia se voltaria a ver, sem vontade de conversar, refugiei-me na amurada do Quanza a fumar um cigarro.
Chegou silencioso e encostou-se a alguns metros de mim, respeitando privacidade ou querendo preservar a sua.
Desinteressei-me do cigarro, lancei a ponta em arco, acompanhei-a por breves segundos e via-a desaparecer no mar calmo. Ele fez o mesmo e, em simultâneo vencemos a distância que nos separava
-Sem sono?-- inquiri à falta de melhor argumento.
Encolheu os ombros, procurou novo cigarro que não acendeu e confessou:
-Não suporto o ruído do camarote. É um ruído soturno que enche todo o barco – aqui mal de ouve – parece que isto é um animal vivo a resfolgar...
-É... realmente parece vivo! – aguardei um pouco e como não obtivesse resposta, avancei. – Também já o senti: Um ruído pesado, mistura de ruídos, o motor, as condutas de ar a resfolgarem...
De novo o silêncio nos envolveu. Um tripulante passou, olhou-nos e seguiu sem uma palavra. Carne para canhão, terá pensado.
A noite anterior, passada num incómodo comboio que de Faro nos largou no cais de embarque, começou a pesar em mim e, depois de uma breve apresentação – “Eu sou da 306”, eu da CCS”, lado a lado, enfrentámos o calor e o ruido surdo das entranhas do mastodonte.
Durante a viagem encontrámo-nos algumas vezes no espaço limitado do barco. Desembarcámos lado a lado e no cais de Luanda fomos apartados como gado, por Companhias.
Voltámo-nos a encontrar no dia seguinte na campo militar do Grafanil, a alguns quilómetros de Luanda onde ficaríamos algum tempo, “em adaptação”, antes de seguirmos para o Norte, destino mais adivinhado que informado.
Em Cuimba, bem ao Norte, já a CCS estava instalada quando lá chegámos e pernoitámos. Foi ele que me encontrou e me arrastou para uma cama vaga, debaixo de telha, melhor dizendo, debaixo de lata, um barracão coberto com zinco. Regressei ao “perímetro” da Companhia a tempo de partilhar o copo de café com leite, quente,e um pouco de pão mole.
Naquela longa deslocação de dias intermináveis, viajava no jeep do comandante da companhia como coordenador das ligações interpelotões e do comandante para os pelotões em coluna de marcha e também com a sede do batalhão. Partilhava o assento de trás com o cabo rádio telegrafista, o operador do comando. Ainda não havia notícia de minas anti-carro e e comandante da companhia deslocava-se à frente, afoito, livre de pó, ciente de que o poletão que viajava imediatamente atrás era a sua escolta pessoal.
Antes de transpor o cavalete de arame farpado, o meu amigo de viagem lá estava e ao adeus breve juntou uma palavra “sorte”!
No ano de “estadia” em Pangala, nosso destino, voltei a ver aquele meu amigo pelo menos duas vezes, aquando das minhas deslocações ao Comando para resolver problemas que afligiam a “minha” secção de rádio. Encontrámos tempo para conversar e, numa ocasião em que tive que ficar alguns dias preso pela reparação de um rádio e falta de transporte de retorno, conseguiu-me uma cama no seu alojamento. Conversámos calmamente as nossas saudades da família, o problema das minas que assoberbava todos e aumentava o número de baixas. Havia um sargento que, diariamente, aparecia com uma anedota e nos fazia rir com gosto afastando mágoas e tristezas.
Uma coluna do comando para S. Salvador, passando no cruzamento para Pangala cortou aqueles dias que pareceram férias.
No cruzamento, uma patrulha da 306 esperava-me e, com os rádios operacionais, regressei a Pangala.
Só nos voltámos a encontrar em Luanda, para onde fomos descansar das agruras do norte.
Para fugir às precárias instalações do Grafanil e não ser pasto dos mosquitos que, aos milhares nos marcavam como se estivéssemos com sarampo, quase todos procurámos quartos na cidade.
Aí, de novo nos encontrámos com o mesmo propósito e estivemos em vias de partilhar um quarto para os lados dos correios, mas, por uma vicissitude qualquer que já não recordo, o intento não se concretizou e acabei partilhando parte de um apartamento frente ao Hotel dos Oficiais com o Costa Pereira e o Ribau. Por vezes cruzava com o meu fugaz amigo, íamos ao cinema, ao L'Étoile deliciarmo-nos com a cantora de serviço e a beber uns copos.
A 306 foi para Cabo Ledo com um pelotão na Muxima e só nos encontrámos nas vésperas do tão almejado embarque de regresso às nossas casas, ao seio dos nossos familiares dando-lhes o contentamento de regressarmos vivos.
Na pressa da saída, cada um tentando o mais rapidamente libertar-se das últimas “obrigações” não o voltei a ver e apercebi-me então que nunca tínhamos trocado endereços...
Num restaurante de comida ao balcão, em Lisboa, dois anos depois, lá estava ele. Escandalizámos os presentes com os longos abraços que trocámos e as palmadas nas costas ecoaram amizade, uma forma simples de amizade imperecível.
Lado a lado, com os olhos no relógio embora, ele deu-me uma imagem que permanece para a vida inteira:
-Somos como dois cometas cujas órbitas por vezes se encontram e fazem um grande festival de luz!
Nos encontros anuais do Batalhão a que tanto tenho faltado, procurávamo-nos e renovávamos o prazer de novo encontro.
Chocado ainda com a notícia do seu passamento, numa última recordação de saudade, não posso deixar de pensar nos cometas. A sua órbita abriu-se apontando para o infinito. Também a minha, mais tarde ou mais cedo, se abrirá e quem sabe, se voltarão a cruzar.
Até lá, Quirino, arrastarei comigo a saudade de um bom amigo e daqueles dias fortuitos que tanto nos ligaram.
28SET2011
J. Eduardo Tendeiro
CCE 306
Angola, 62/64