ENCONTRO EM BRUXELAS

 

 

 

 

 

 

 

A guerra entra na nossa vida como um cometa. Um cometa que passa, mas com uma cauda enorme, infindável que se enleia em nós, a poeira cósmica carregada de recordações, umas latentes, outras bem vivas, sempre presentes. Uma poeira que nos envolve, invisível, cada grão pulsando à espera que um gesto, uma palavra, um acto ou um feito lhes dê vida.
Grãos que explodem, dilaceram, trazem à superfície o horror daqueles dias, o stress que ficou, a dor que, liberta, rasga, reabre feridas nunca curadas.
Raramente nos traz uma boa recordação. Também as há, particularmente as que nascidas nos momentos difíceis, geraram amizades que nem o tempo pode apagar.

 

 

 

Deambulava pelo largo passeio daquela avenida imerso num mar de línguas diferentes onde predominava o
francês. Um francês diferente do de Paris, mas entendível. Duas senhoras avantajadas passaram por mim falando alemão. Japoneses tagarelando a sua língua, negros, muitos negros com os seus dialectos apressados, muçulmanas de longas vestes, cabeças cobertas, olhar triste e silenciosas.

Mergulhado nesta cacofonia, de súbito ouvi atrás de mim um berro bem português, gritando o meu nome.

Estaquei, virei-me e dei com um ancião calvo, de vente proeminente, agitando no ar o que me pareceu uma bengala.

Fulminante como um raio, vi-o no seu camuflado desleixado, o cinto descaído, um eterno cigarro entre os lábios .

Furei por entre as pessoas distribuindo “pardon”e “sorry” à esquerda e direita e abraçámo-nos com vigor.

- Que fazes aqui?

- Passeio. E tu?

- Eu? Eu moro aqui!

- Tu? Emigraste ou quê?

Não respondeu, preferindo reforçar o prazer do encontro inesperado:

- Tão longe que estava de te ver!... Quando passei por ti fiquei especado. Eras tu, de certeza! Experimentei
gritar o teu nome e respondeste... – apontando uma esplanada, arrastou-me para lá – vamos aqui celebrar, isto não acontece todos os dias. Sabes quantos anos já lá vão?...

- Quarenta e tantos, respondi.

Sentados na esplanada, com enormes canecas de cerveja à nossa frente, repeti a pergunta anteriormente
formulada:

- Afinal, o que fazes aqui?

- Já te disse, moro aqui, sou de cá...

- Como é que arranjaste isso? Conta lá!...

Ajeitou o corpo rubicundo na cadeira, bebeu dois goles generosos de cerveja e satisfez a minha curiosidade:

- Quando regressámos – uns meses depois de ti – não tinha emprego nem qualificações específicas. Sabia um pouco de electricidade, reparava rádios…

- Sem trabalho, emigraste, foi?

- Nem mais. Uns amigos dos meus pais deram-me guarida e vim para cá.

- Fazer o quê?

- Boa pergunta. Tudo o que aparecia. Limpezas, obras, foi duro, mas queria vencer...

- E acabaste a fazer o quê?

- Calma, pá! Isto dava um romance, daqueles de muitas páginas... Um dia fui fazer uma obra num hospital
como ajudante de electricista. Sabia umas coisas e o patrão até me tinha aumentado, mas conheci lá uma enfermeira...

Limitei-me a sorrir, lembrando a sua apetência por mulheres.

- Não te rias, pá! A coisa foi séria! Apaixonámo-nos, fui viver com ela. Por seu intermédio consegui no
hospital um lugar de ajudante de electricista: Vê bem, pá: eu rádio-montador, credenciado em instalações eléctricas, ajudante de electricista! Mas estava com ela, tínhamos horários compatíveis... Comecei a mostrar os meus conhecimentos, fiz cursos e, dois anos depois, era electricista estagiário.

Casámos, veio o primeiro filho, mudámos de casa.

- Tens mais filhos? – Perguntei para aliviar o relato.

- Tenho mais um, uma, um casal. Já me deram netos. Olha bem para mim: eu, avô!

- Que novidade! Eu também já sou avô. Mas conta mais.

- Pouco mais há que contar. O engenheiro chefe começou a notar os meus conhecimentos, entregou-me a gestão
das rádio-comunicações do hospital e fiz carreira. Já me aposentei, ela sai para o ano e contamos ir passar uns tempos a Portugal. Como está aquilo por lá???

Tardei a responder.

- Vai preparado para encontrares pouco de bom. Maus governos, partidos incapazes de se entenderem, ninguém a incentivar criação de trabalho, justiça só para pobres...delapidaram o tesouro do Salazar, amanha-se cada um para seu lado, os tipos que passam pelo governo ficam com reformas brutais, olha, pá: vai num pé e volta noutro. Evita pensar naqueles nossos dois anos tão mal empregados e no celebrado vinte e cinco de Abril

- E ninguém faz nada?

- Quem? A tropa? Não te esqueças que tudo isto decorre dentro de um governo eleito pelo povo e os militares, sem nada que fazer, estão acomodados.

Vieram mais duas canecas, recuseia terceira e resolvi espicaçá-lo um pouco, prospectando antigas “fraquezas”:

- Mas tu não podes dizer mal da  guerra. Se não tivesses aprendido umas coisas de rádio não estavas aqui agora, aposentado a beber cerveja e a pensar nos netos...

- Não gozes, pá. Eu, tu, todos nós, dispensávamos bem aquela experiência por que passámos, até por respeito para com os que lá deixámos...

- Tens razão, mas aqui só entre nós, foi na psico que até aprendeste a dar injecções, naquelas grandes filas que vinham para as vacinas e tratamentos.

- Lá isso é verdade!

- E às mulheres era sempre na nádega, não era?...

Com um belo sorriso, corrigiu-me:

- Só às mais novas …

  

FIM

 

 

Bruxelas,25 de Agosto de 2010

 

NOTA DO AUTOR

Este, do meu encontro em Bruxelas,foi sargento  rádio-montador no comando
de um batalhão  operacional, no nosso tempo em Angola.

 

Conheci-o já no Grafanil, vindo também do norte e gastei algumas horas do meu tempo livre na sua bancada de
trabalho perscrutando entranhas de rádios que naquele tempo estavam ao nosso serviço.

Encontrámo-nos ainda algumas vezes em Luanda, antes da nossa ida para lá do Quanza.

 

(J. Eduardo Tendeiro

ex sargento de transmissões da CCE306

  Angola, 62/64)

publicado por gatobranco às 16:41 | link do post | comentar | ver comentários (2)