Domingo, 24.06.12

A PRIMEIRA ACÇÃO DE GUERRA DA CCE 306

Nota prévia:

Para melhor enquadrar a nossa primeira “acção de fogo” pareceu-nos acertado dividir este relato A PRIMEIRA ACÇÃO DE GUERRA DA CCE 306 em dois capítulos que serão publicados em separado.

Um primeiro relembra a nossa deslocação para o Norte de Angola (De Luanda a Cuimba) e o segundo capítulo, (de Cuimba a Pangala)  o relato da primeira acção de fogo da CCE 306.

 

I

De Luanda a Cuimba

 

Depois de algum tempo no Grafanil, campo militar às portas de Luanda, os boatos superavam as acções a desempenhar e escolhíamos os que nos pareciam mais favoráveis “Vamos para o Norte!” Isso todos sabíamos. “Vamos para S. Salvador, vai ser bestial, dizem que aquilo é bom, até temos avião para vir a Luanda”.

Porém, um dia, depois de nos terem mandado comprar artigos de higiene "para algum tempo", uma notícia
tirou-nos ilusões de opção: íamos para o norte, pois claro, para a fronteira com o Congo tapar linhas de infiltração e fazer a segurança da zona .

 

No dia 11 de Junho daquele ano de 62, antes de o sol timidamente começar a anunciar a sua presença a nascente, tingindo de vermelho os telhados de zinco, uma serpente a perder de vista de enorme que era, vomitada pelos portões escancarados do Grafanil, fez-se à estrada. Eram os primeiros momentos da deslocação de uma longa coluna auto que nos levava para o norte, para os nossos destinos.

Nomes que conhecíamos do estudo da geografia como locais importantes da “província Ultramarina de Angola” foram desfilando ante nós. Salazar, Camabatela, Negage, o já famoso Negage, na ainda curta história da “guerra de Angola”, decepcionantes  pequenos aglomerados com algumas, poucas, centenas de residentes incluindo as forças militares estacionadas, recebiam-nos para abrigo de uma noite passada de qualquer modo, dentro ou debaixo das viaturas. Geralmente, só os oficiais tinham melhor abrigo. Para cada etapa partíamos cedo evitando o sol a que não estávamos habituados e que nos martirizaria ao longo da jornada amassando pó com suor abundante.

À medida que progredíamos para norte, sempre para Norte, a presença humana diluía-se, os pequenos agrupamentos de autóctenes rareavam e não voltámos a ter crianças a correrem ao lado das viaturas à espera de bolachas ou chocolate subtraídos das rações de combate.

 

(vendo a tropa passar)

 

Ultrapassado o Bungo, estacionámos em Maquela e aí ouvimos histórias de diamantes desviados que arranjavam a vida de alguns, de estradas cortadas e pontes destruídas.

Como habitualmente, bem cedo, marchámos para Cuimba, última paragem antes de nos lançarmos na aventura de conquistar Pangala, uma casa de adobes coberta de zinco, perdida algures, num ponto mal definido da carta militar.

Foi-nos dada a garantia de que duas pontes que iríamos utilizar estavam operacionais e, manhã cedo fizemo-nos à estrada. Capim alto, verdejante, engolia as viaturas.

Uma picada mais estreita do que as que vínhamos trilhando, acusando manifesta falta de uso era a estrada de ligação Maquela- Cuimba - S. Salvador, na qual encontraríamos um desvio para a direita em direcção a Buela. Aí se situava o local onde iríamos construir o nosso aquartelamento sinalizado pela já famosa casa com telhado de zinco que, obviamente, albergaria o comando e que teria o nome da sanzala mais próxima--Pangala.

A antena do ANGR-C9 que equipava o jeep do Comandante da Companhia no qual um rádio telegrafista e eu nos
deslocávamos ocupando o banco traseiro, matraqueava os caules grossos das beiras da picada ao sabor das oscilações da viatura, imitando  rajadas de metralhadora. Em abono da verdade se diga que em cerca de mil quilómetros trilhados não tinha havido um único disparo ou ameaça à progressão da coluna, o que nos conferia um certo à-vontade.
No entanto, em Maquela, tínhamos sido prevenidos de algumas acções hostis de terroristas que destruíam pontes e atravessavam árvores nos caminhos.

(Por vezes, a picada era um lago)

 

O primeiro pontão foi ultrapassado sem história e, quilómetros à frente, surgiu a ponte sobre um rio mais caudaloso: grossos troncos  lançados  de margem  a margem  forrados  com duas linhas de pranchas nas
quais era suposto os condutores serem capazes de alinhar as rodas das suas viaturas.  Por precaução o pessoal passou a pé e os condutores, ajudados por uma multidão de voluntários que se contradiziam, lá foram deslizando pelas pranchas. As viaturas pesadas, de rodado duplo sobre pranchas vergadas com o peso, rodas exteriores 
abocanhando o vazio  também atingiram a outra margem.

Com a tropa de novo montado, comentando o feito, ironizando o suor dos condutores, alguns deles ainda de
mãos trémulas chupando ávidos o cigarro que os acalmaria, a coluna venceu uma pequena subida que a retirou do vale do rio e atingimos Cuimba sem dificuldades de monta.

publicado por gatobranco às 19:17 | link do post | comentar

dois

II

De Cuimba a Pangala

Seguindo o esquema de viagem, no crepúsculo da manhã de 17 de Junho  retomámos a marcha.
A coluna era já diminuta, constituída apenas pelas viaturas da nossa Companhia e algumas camionetes com materiais de apoio. Mas o estômago ia reconfortado. Antes da partida, tínhamos sido brindados com pão fresco e café com leite.

Trilhando a estrada Cuimba - S.Salvador, uma picada apertada com o piso em mau estado e pouco trilhada, progredimos lentamente.

Vencido um pontão de aspecto manhoso sobre uma pequena linha de água e, após uma curva pronunciada para a esquerda, com um pequeno bosque do mesmo lado emergindo de um mar de capim e um talude à direita, um disparo de arma de fogo sobressaltou-nos. Parecia vir do bosque, motivando de imediato a fuzilaria das tropas do pelotão que seguia a viatura do comandante da companhia, varrendo o bosque. O nosso condutor travou o jipe e lançou-se para uma pequena valeta que conferia alguma protecção. Em segundos tinha a minha companhia e a do rádio telegrafista. O nosso comandante, curvado e ofegante juntou-se-nos.

 O coração batia cavo contra o terreno, as têmporas latejavam  e as mãos geladas afagavam a FBP. Uma estranha quietude inundou-me. O condutor, com a arma levantada acima da cabeça disparava ao acaso, presumidamente para o bosque.

“P’ra onde estás a disparar? – Gritei quando se atarefava a mudar de carregador.

“P’ra mata…"

“Mas viste alguma coisa?”

“Não, mas os gajos devem estar lá”…

Uma fuzilaria vinda dos lados do bosque, colou-nos ao terreno e levantou pequenas nuvens de poeira na barreira
atrás de nós, sem atingir as viaturas. Os projéteis passavam alto. Os pelotões que avistava até à dobra do cotovelo, retaliaram. Alguns ramos das árvores do bosque acusaram os impactos e lançavam estilhas em todas as direcções.

Esta situação de disparam eles, disparamos nós repetiu-se ainda mais duas vezes.

Deitado ao lado do condutor que finalmente tinha esgotado os seus carregadores e se aquietara, analisei a situação: o grupo de terroristas tinha que ser de algumas dezenas e ter armas automáticas para corresponder assim ao nosso fogo .Punha em questão estas reflexões quando o ladrar rouco e inconfundível de uma Breda se sobrepôs à fuzilaria. No talude, à nossa rectaguarda, os projéteis de 8 mm cavavam tocas.

“Aquela Breda só pode ser nossa” – gritei para o capitão comandante da Companhia alapado no terreno.

 Sugeri-lhe que mandasse parar o fogo.

Com um violento abanar de cabeça concordou e, ao bom estilo de Lamego, mergulhei, rebolei e rastejei até ao
jipe. Com o micro entre os dedos estendi-o ao comandante que o recusou com um gesto de repulsa.

 Protegido pela roda suplente da viatura, o aparelho na concha da mão, gritei:

“Aqui Charlie Mike (abreviatura simplificada e não oficial de comandante). A toda a coluna: Cessar fogo. Repito. Cessar fogo.
Ordem de Charlie Mike”

Em poucos segundos o silêncio de igreja vazia fez doer os ouvidos. A Natureza ferida, numa quietude de protesto, interiorizava asua dor.

 A suspeita tornou-se evidente. Estávamos a disparar uns contra os outros, traídos pela curva apertada que a picada fazia.

Comentei-o com o  comandante e, mais seguro, decidiu mandar avançar a coluna com o pessoal apeado. Curvado ao lado da viatura na busca de uma possível proteção, de novo recusou o micro e transmiti a sua ordem.

As viaturas progrediram lentamente, talvez quinhentos metros com os militares abrigados atrás dos respectivos
transportes, depois ladeando-os. Atingiu-se um terreno quase plano com boa visibilidade e o comandante da companhia mandou que eu transmitisse a sua ordem de “embarque nas viaturas e retoma da marcha”.

Durante cerca de uma hora, em marcha muito lenta e difícil, vencendo troços de lama, fomos sacudidos ao sabor das covas do caminho. Frequentemente mergulhávamos em túneis de capim que as GMCs iriam alargar.

 Banhado pela tranquilidade da paisagem, recuperada a dignidade no seu assento de Comandante, virando-se para trás,  questionou-me:

“Acha que aquele primeiro tiro veio mesmo da mata?”

“De que outro lado poderia ter vindo?” – Returqui ambíguo, encolhendo os ombros.

A resposta tardou:

“Não sei… estou cá a pensar se não poderia ter partido de um militar nosso"…

O cabo Carlos, o condutor, entrou na conversa:

“Mas o fogo vinha da mata, eu vi…”

“Cala-te e vê se descobres esse maldito desvio”. – Invectivou-o o comandante e, para mim, prosseguiu –“ eu vou averiguar e se descobrir o autor, ferro com ele na cadeia, é cadeia…É que eles ainda não têm armas automáticas em tão grande número para aquele potencial de fogo”…

Um solavanco maior fê-lo abandonar a posição torcida que assumira para me encarar.

A meu lado, o cabo radiotelegrafista Manuel sorriu e com os dedos compôs uma grade de hipotética cadeia.

Também eu assumira já que o tiroteio tinha sido despoletado por um disparo talvez inadvertido de um dos nossos militares.

 

Seguíamos atentos ao desvio para a direita que nos levaria a Pangala, “uma casa abandonada coberta com chapas dezinco”.

Tardou a surgir a “nossa estrada” sob a forma de uma falha no capim que orlava a picada que trilhávamos. Abandonada há muito, os dois sulcos paralelos marcados pela últimas  viaturas que o tinham pisado, por vezes
desapareciam.

(Chegada a Pangala 17-6-62)

 

Toda a nossa atenção se fixava na orla direita do caminho esperando descobrir a casa referência . Atrás de nós,
os militares de pé no Unimog, pescoços estendidos na ânsia de descobrirem o objectivo, esquadrinhavam o limitado horizonte.

Num coro de júbilo, cerca das dez horas, com 1035 quilómetros percorridos, avistámo-la a por fim, enterrada na
vegetação.

As janelas, órbitas de caveira dissimulada no capim, espreitavam-nos numa macabra recepção de boas-vindas.

 

Fim

NOTA DO AUTOR

Mais tarde confirmou-se que um militar inadvertidamente acionara a sua G3. Mas essa informação foi sonegada ao nosso comandante de companhia que face à passividade dos seus oficiais e sargentos em “descobrirem” a verdade, os ameaçou de obstrução à justiça e… cadeia.

 

O nome do autor do disparo foi o segredo melhor guardado daquela Companhia de Caçadores Especiais que, de 17de Junho de 62 até meados de Maio de 63, abnegadamente, cumpriu com honra as missões que lhe foram atribuídas.

 

J. Eduardo Tendeiro

(Sargento de transmissões da CCE 306

Angola, 1962/64)

publicado por gatobranco às 18:45 | link do post | comentar
Sábado, 23.06.12

A ÚLTMA PATRULHA

Acordou em sobressalto. Os ponteiros luminosos do relógio de pulso apontavam as três . Dispunha ainda de duas horas. Sabia que já nãovoltaria a adormecer, mas num esforço de vontade imobilizou-se numa posição confortável.

Desde que tivera conhecimento de que o seu pelotão fora escalado para aquela escolta invadira-o uma angústia inexplicável. Seria  praticamente a sua última  missão  de  guerra. Depois, até ao embarque de regresso
à Metrópole, à sua casa, aos seus amigos, à sua noiva, pouco mais faria. Talvez um serviço à “Rede”, um reforço, coisas de pouca monta. Mas era aquela angústia!...   E ele nem era supersticioso!

Sentiu vontade de se virar mas impôs-se aquela posição e iniciou exercícios de relaxamento. Era uma escolta como outras tantas  que fizera, algumas  com  acções  de  fogo. O  itinerário  nem  era perigoso  comparado com
outros já  trilhados, mas havia aquela espécie de angústia…

Experimentou rezar. Uma Avé Maria fluiu fácil na sua mente, o Pai Nosso demorou mais tempo a ser recordado e teve problemas com a Confissão. Desiludido tentou o Credo. Desistiu frustrado. Já tinha passado tanto tempo!
Recordou com saudade os primeiros ensinamentos da Mãe. Benzer-se. Custou a aprender que devia fazer os braços da cruz da esquerda para a direita… enterneceu-se com a aprendizagem da primeira oração. Deleitado, recitou-a:
“Anjinho da guarda/ minha doce companhia/ guardai a minha alma/ de noite e de dia”. Quanta ternura! Mas, no momento, não se tratava de guardar a alma mas sim o corpo. Faltava tão pouco para acabar aqueles malditos dois anos de dor, suor, sangue e morte. Não era justo que a poucos meses, talvez dois do seu embarque ainda o expusessem a perigos de morte.

Não está certo, Deus!
Há outros mais novos… não, não é isso meu Deus! Não Te vou pedir que mandes morrer qualquer outro por mim, não é isso! Sabes que sempre quis que não morresse ninguém!

Confuso, esquecido dos exercícios de relaxamento, retomou o pensamento:

Deus, não quero que ninguém morra, mas, desde que soube desta patrulha apoderou-se de mim uma angústia, um mau presságio! E falta tão pouco tempo para sair deste inferno de homens a matarem homens,  contrariando as Tuas Leis.

Num acto de contrição, recordou que certamente também ele já tinha infringido todas as Leis que Deus deixou aos homens.

Deus, eu não devia pedir-te nada… até porque não mereço… Dizem que tudo está escrito no grande livro da vida,   cada um de nós tem uma página em que está inscrita a nossa hora. Por vezes tens piedade de um ou outro e consentes em fazer alterações na página deles. Chamam-lhe Milagres. Nunca me importei muito Contigo eu sei, por isso não te vou pedir um milagre. Também não vou fazer-te promessas. Detesto as promessas. São uma espécie de contrato.  Uma espécie de troca. Se me concederes isto, dou-Te aquilo. Vou a pé a Fátima, atravesso o Santuário de joelhos deixando um rasto de sangue. Não acredito que queiras que as pessoas se martirizem para que lhes concedas qualquer coisa. Se Te pedisse vida para estes dois meses e  a concedesses, o que é que eu Te poderia dar em troca? Não precisas de nada, és Rei e Senhor de tudo!

De novo mudou de posição sobre a enxerga. Irritou-se consigo mesmo: Raios, é uma merda de escolta. O itinerário está pacificado. Logo à noite estou aqui outra vez…
Senhor, vou fazer por isso. Vou estar aqui logo à noite.

Espantou-se e orgulhou-se da sua certeza mas, muito lá no fundo continuava aquele incómodo. Contornou-o: claro que certezas  ninguém tem, mas as probabilidades são todas a favor. Deus, não acredito que queiras matar alguém, que deixes que me matem… Vou fazer-Te um pedido. Sem promessas. Só um pedido. Se é verdade que todos temos uma folha no grande livro da vida e se estiver lá escrito que vou morrer nesta escolta, por favor apaga isso. Deixa-me ser eu a tentar safar-me por mim mesmo.

 

Sentiu-o chegar desenhando arabescos no escuro com a luz da potente pilha. O sargento de dia à Companhia acionou os interruptores que inundaram de luz o dormitório e, com voz forte proclamou:

“Toca a levantar. Camas arrumadas. Às cinco e meia todos na cozinha. Há pão fresco, queijo e marmelada. Ração individual de combate para cada um. Cantis cheios de água"… (alguém sugeriu: Não pode ser vinho?)

 Indiferente à graçola, o sargento prosseguiu:

…” Às seis horas, viaturas em marcha" – num arremedo de simpatia, concluiu – "boa viagem!”

“Adeus, até ao meu regresso” – proclamou a voz anónima e outra convidou – “Não quer vir também?”

 

Debruçado sobre as botas que apertava com cuidado, indiferente ao ruído envolvente concluiu os seus pensamentos daquela madrugada:

Mas, Senhor, com uma ajuda Tua, tudo vai correr bem.

Recordando as tiradas latinas do seu companheiro de quarto, ex seminarista, plagiou-o:

"DEO JUVANTE"

 

Fim

(in Apontamentos – Angola, 62/64)

J. Eduardo Tendeiro 
CCE 306

publicado por gatobranco às 15:42 | link do post | comentar | ver comentários (2)

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