dois

II

De Cuimba a Pangala

Seguindo o esquema de viagem, no crepúsculo da manhã de 17 de Junho  retomámos a marcha.
A coluna era já diminuta, constituída apenas pelas viaturas da nossa Companhia e algumas camionetes com materiais de apoio. Mas o estômago ia reconfortado. Antes da partida, tínhamos sido brindados com pão fresco e café com leite.

Trilhando a estrada Cuimba - S.Salvador, uma picada apertada com o piso em mau estado e pouco trilhada, progredimos lentamente.

Vencido um pontão de aspecto manhoso sobre uma pequena linha de água e, após uma curva pronunciada para a esquerda, com um pequeno bosque do mesmo lado emergindo de um mar de capim e um talude à direita, um disparo de arma de fogo sobressaltou-nos. Parecia vir do bosque, motivando de imediato a fuzilaria das tropas do pelotão que seguia a viatura do comandante da companhia, varrendo o bosque. O nosso condutor travou o jipe e lançou-se para uma pequena valeta que conferia alguma protecção. Em segundos tinha a minha companhia e a do rádio telegrafista. O nosso comandante, curvado e ofegante juntou-se-nos.

 O coração batia cavo contra o terreno, as têmporas latejavam  e as mãos geladas afagavam a FBP. Uma estranha quietude inundou-me. O condutor, com a arma levantada acima da cabeça disparava ao acaso, presumidamente para o bosque.

“P’ra onde estás a disparar? – Gritei quando se atarefava a mudar de carregador.

“P’ra mata…"

“Mas viste alguma coisa?”

“Não, mas os gajos devem estar lá”…

Uma fuzilaria vinda dos lados do bosque, colou-nos ao terreno e levantou pequenas nuvens de poeira na barreira
atrás de nós, sem atingir as viaturas. Os projéteis passavam alto. Os pelotões que avistava até à dobra do cotovelo, retaliaram. Alguns ramos das árvores do bosque acusaram os impactos e lançavam estilhas em todas as direcções.

Esta situação de disparam eles, disparamos nós repetiu-se ainda mais duas vezes.

Deitado ao lado do condutor que finalmente tinha esgotado os seus carregadores e se aquietara, analisei a situação: o grupo de terroristas tinha que ser de algumas dezenas e ter armas automáticas para corresponder assim ao nosso fogo .Punha em questão estas reflexões quando o ladrar rouco e inconfundível de uma Breda se sobrepôs à fuzilaria. No talude, à nossa rectaguarda, os projéteis de 8 mm cavavam tocas.

“Aquela Breda só pode ser nossa” – gritei para o capitão comandante da Companhia alapado no terreno.

 Sugeri-lhe que mandasse parar o fogo.

Com um violento abanar de cabeça concordou e, ao bom estilo de Lamego, mergulhei, rebolei e rastejei até ao
jipe. Com o micro entre os dedos estendi-o ao comandante que o recusou com um gesto de repulsa.

 Protegido pela roda suplente da viatura, o aparelho na concha da mão, gritei:

“Aqui Charlie Mike (abreviatura simplificada e não oficial de comandante). A toda a coluna: Cessar fogo. Repito. Cessar fogo.
Ordem de Charlie Mike”

Em poucos segundos o silêncio de igreja vazia fez doer os ouvidos. A Natureza ferida, numa quietude de protesto, interiorizava asua dor.

 A suspeita tornou-se evidente. Estávamos a disparar uns contra os outros, traídos pela curva apertada que a picada fazia.

Comentei-o com o  comandante e, mais seguro, decidiu mandar avançar a coluna com o pessoal apeado. Curvado ao lado da viatura na busca de uma possível proteção, de novo recusou o micro e transmiti a sua ordem.

As viaturas progrediram lentamente, talvez quinhentos metros com os militares abrigados atrás dos respectivos
transportes, depois ladeando-os. Atingiu-se um terreno quase plano com boa visibilidade e o comandante da companhia mandou que eu transmitisse a sua ordem de “embarque nas viaturas e retoma da marcha”.

Durante cerca de uma hora, em marcha muito lenta e difícil, vencendo troços de lama, fomos sacudidos ao sabor das covas do caminho. Frequentemente mergulhávamos em túneis de capim que as GMCs iriam alargar.

 Banhado pela tranquilidade da paisagem, recuperada a dignidade no seu assento de Comandante, virando-se para trás,  questionou-me:

“Acha que aquele primeiro tiro veio mesmo da mata?”

“De que outro lado poderia ter vindo?” – Returqui ambíguo, encolhendo os ombros.

A resposta tardou:

“Não sei… estou cá a pensar se não poderia ter partido de um militar nosso"…

O cabo Carlos, o condutor, entrou na conversa:

“Mas o fogo vinha da mata, eu vi…”

“Cala-te e vê se descobres esse maldito desvio”. – Invectivou-o o comandante e, para mim, prosseguiu –“ eu vou averiguar e se descobrir o autor, ferro com ele na cadeia, é cadeia…É que eles ainda não têm armas automáticas em tão grande número para aquele potencial de fogo”…

Um solavanco maior fê-lo abandonar a posição torcida que assumira para me encarar.

A meu lado, o cabo radiotelegrafista Manuel sorriu e com os dedos compôs uma grade de hipotética cadeia.

Também eu assumira já que o tiroteio tinha sido despoletado por um disparo talvez inadvertido de um dos nossos militares.

 

Seguíamos atentos ao desvio para a direita que nos levaria a Pangala, “uma casa abandonada coberta com chapas dezinco”.

Tardou a surgir a “nossa estrada” sob a forma de uma falha no capim que orlava a picada que trilhávamos. Abandonada há muito, os dois sulcos paralelos marcados pela últimas  viaturas que o tinham pisado, por vezes
desapareciam.

(Chegada a Pangala 17-6-62)

 

Toda a nossa atenção se fixava na orla direita do caminho esperando descobrir a casa referência . Atrás de nós,
os militares de pé no Unimog, pescoços estendidos na ânsia de descobrirem o objectivo, esquadrinhavam o limitado horizonte.

Num coro de júbilo, cerca das dez horas, com 1035 quilómetros percorridos, avistámo-la a por fim, enterrada na
vegetação.

As janelas, órbitas de caveira dissimulada no capim, espreitavam-nos numa macabra recepção de boas-vindas.

 

Fim

NOTA DO AUTOR

Mais tarde confirmou-se que um militar inadvertidamente acionara a sua G3. Mas essa informação foi sonegada ao nosso comandante de companhia que face à passividade dos seus oficiais e sargentos em “descobrirem” a verdade, os ameaçou de obstrução à justiça e… cadeia.

 

O nome do autor do disparo foi o segredo melhor guardado daquela Companhia de Caçadores Especiais que, de 17de Junho de 62 até meados de Maio de 63, abnegadamente, cumpriu com honra as missões que lhe foram atribuídas.

 

J. Eduardo Tendeiro

(Sargento de transmissões da CCE 306

Angola, 1962/64)

publicado por gatobranco às 18:45 | link do post | comentar