A ronda

 

 
 
A ronda
 
O primeiro posto de vigia situava-se muito próximo do dormitório
dos oficiais, rente à janela do quarto individual do comandante
de companhia. O militar de serviço, o mil e doze, veio ao meu encontro e antecipou a resposta à pergunta habitual:
            -Está tudo calmo!... Só há ali— apontou para os lados da porta norte—um “filha-da-puta” dum pássaro que chateia. Há mais de uma hora que está a piar... até já lhe enfiei com umas pedradas, mas com uma rajada calava-o de vez.
            -Nem penses! — Admoestei sisudo— se acordas o nosso capitão por causa dum pássaro, vais ficar de serviço o resto do mês. Deixa lá o pássaro. Sabe-se lá se não está a chamar uma fêmea...
--Já me tinha lembrado disso, deve ser um “noitibó” a desafiar a pássara. E, se calhar, vai ter sorte—concluiu carrancudo.
-E tu com inveja, não?...— retruquei insidioso.
 Olhou-me com um sorriso luminoso, os olhos a brilharem no escuro da noite, numa antecipação de prazer:
-Ai não, que não tenho!... Já nem me lembro como é uma mulher de pernas abertas!...
--Eu arranjo-te uma fotografia, queres? — Propus com ironia.
-Enquanto não for a S. Salvador... não deixa de dar jeito...
-Vê se te lembras de levar uma “camisa”, para não andares depois a correr para a enfermaria! — Aconselhei afastando-me.
O posto de vigia seguinte tinha sido construído sobre a forquilha de uma árvore decepada. A plataforma rudimentar fora posteriormente blindada com chapas de bidons abertos, reforçados com pranchas de madeira pela parte interior do abrigo. Meia dúzia de sacos de terra pretendiam formar algumas seteiras a duzentos e setenta graus. O acesso inicial, uma tosca escada, era feito então por algumas travessas pregadas directamente no tronco da árvore. Arrastando os pés, chamei a meia voz:
-Sentinela
-‘tou aqui!—respondeu o “Rela”—suba.
            Empurrando a FBP para as costas, trepei as toscas escadas e penetrei no acanhado espaço da "torre de vigia" do sul. O soldado, embrulhado no seu poncho, deslizou sobre a tábua que servia de assento num convite mudo para que me sentasse. Aceitei. Virados para a picada que morria na porta sul e que renasceria do outro lado do acampamento, em direcção a Buela, com os contornos da Canda atrás de nós difusamente recortados no céu estrelado, inquiri:
            -Como vai isto?
            -Bem... Só há ali um sacana dum pássaro que está a pedir uma rajada...
            -Nem penses, pá. O mil e doze já lhe atirou umas pedradas mas volta sempre ao mesmo. Parece que está a chamar uma fêmea...--insinuei átona.
            Mas o “Rela” não reagiu como o anterior. Limitou-se a encolher os ombros e murmurar um "Se calhar"...
            O rectângulo quase perfeito que o acampamento desenhava, com as quatro casernas, uma por pelotão, a casa do comando e a camarata dos sargentos, a cozinha e o paiol a marcarem dois dos vértices, o nosso posto de vigia e os telheiros da secção auto a delimitarem os restantes, com uma cerca dupla de arame farpado, envolvendo o conjunto a cinquenta metros de qualquer construção, espaço religiosamente capinado e iluminado enquanto o gerador funcionava, lembrava um tosco caixão onde mortos-vivos se acoitavam durante a noite e despertavam com a primeira luminosidade crepuscular.
            -Vou indo – comentei.
            Como se não me tivesse ouvido, o “Rela”, espreguiçando-se dentro do poncho, argumentou:
            -Sabe, meu sargento?... Esta torre faz mal à gente!...- parando o gesto de me levantar, voltei a sentar-me e olhei-o de frente, rodando a cabeça. Por cima do seu ombro, a picada para a água era uma chaga coleante na vegetação rasteira que teimava em crescer para lá do arame farpado - ... é má por duas coisas - prosseguiu a figura escondida no capuz da capa impermeável: primeiro, porque se os gajos nos quiserem atacar, aqui em cima, limpam-nos o sebo com uma simples rajada...
            - Esta blindagem é resistente, já foi testada! - Contrariei, mas não me ouviu.
            -O pior - prosseguiu lúgubre- é que, em noites calmas como esta, um gajo, aqui em cima, põe-se a pensar... é mau para a cabeça, cismam-se coisas... pensa-se nos que deixámos e não sabemos se voltaremos a ver... dá medo! – Era uma confissão sussurrada, quase inaudível.
            Um dos grandes silêncios que, misteriosa e inexplicavelmente povoam as noites africanas, como se a natureza, apiedada das fraquezas humanas, se recolhesse momentaneamente, encheu os nossos ouvidos.
            Angustiado, não querendo vergar-me na partilha de sentimentos comuns, articulei:
            -Família... namorada... tudo, não é? Tudo vem ao cimo nesta quietude!
            O capuz malhado oscilou na vertical acompanhando o gesto vigoroso da cabeça que abrigava.
           -É a minha noiva que mais me lembra! Tínhamos tudo preparado para quando saísse da tropa! O senhor Prior até tinha metido um empenho a um irmão coronel para eu não vir para a guerra!... Se calhar não meteu nada, foi só para consolar a minha Fátima, a minha noiva...
            -Deve ter metido, mas é tão difícil fugir a esta maldita guerra... – tentei animá-lo sem grande confiança.
-Vamos casar a Fátima...é promessa dela se eu voltar vivo!
            -Claro que voltas e, se me convidares, vou lá dar-te um abraço e um beijo à tua Fátima. Como é ela?
            A pergunta surtiu efeito contrário ao que pretendia.
            -É linda!... Os olhos dela...- a voz embargou-se num soluço contido e o poncho vergou-se para a frente, sacudido por uma dor incontrolada.
            Calado a seu lado, esperei que tudo passasse. O pássaro gargalhou para os lados da secção auto. No céu, um meteorito riscou na noite o seu percurso suicida. Com a mão pousada sobre o ombro do soldado, abanei-o lentamente, como se o embalasse:
          -Tens razão pá. Estas noites são tremendas para avivar saudades...
            Limpando os olhos com os dedos e transferindo parte das lágrimas para o cano da G3, confidenciou de novo:
            -É que eu tenho um mau pressentimento... eu não saio daqui vivo!
            -És parvo, pá -- cortei com veemência -- ninguém sabe o amanhã. Pois claro que podemos morrer, mas havemos de sobreviver.
            O meu interlocutor meneava a cabeça que emergira do capuz. Os olhos, brilhantes de lágrimas, captando o brilho das estrelas, ardiam como carvões soprados por brisa malévola.
            -Vai até à caserna, fuma um cigarro, bebe água e volta--comandei com ênfase.
            -Não é preciso - titubeou enquanto eu o empurrava para a abertura de saída.
            Sozinho na "torre sul", mais próximo das estrelas do que a quase centena e meia de mortais que jaziam nos catres espalhados pelo aquartelamento, encarei aquele céu desconhecido e de cuja protecção todos duvidávamos. Todos menos o padre, o nosso ingénuo capelão, que, nas suas homilias inflamadas, teimava em arengar que o Céu era o mesmo e que os anjos, santos e Deus que o povoam são omnipresentes. Omnipresentes? Sorri com amargura recordando o sempre invocado livre arbítrio para justificar as “falhas de Deus”. Rodei um pouco no assento. A picada da água gritava a sua nudez antes de inflectir para a esquerda e mergulhar no vale. De novo virado a poente, com a Canda à esquerda do ângulo de visão, deixei que os olhos se perdessem no céu, saltitando de estrela em estrela, sem qualquer preocupação de identificar constelações estudadas mas nunca antes observadas.
            (…)
            A torre oscilou com a chegada do soldado e duas estrelas cadentes, anormalmente longas, sulcaram o negro da noite, a par.
            -Na minha terra, diz-se que, se quando vemos uma estrela cadente, pedirmos um desejo, ele se realiza! — asseverou.
           -Pediste alguma coisa? --questionei-o severo.
            -Pedi pois, para voltarmos todos, para não haver mais mortos, para que só morram os cabrões que nos quiserem atacar...
            Deixei que o negro da noite me engolisse para não lhe responder que também queria o mesmo... só que éramos estrangeiros na terra daqueles cabrões que tinham todo o direito de nos quererem pôr dali para fora...
            Debruçado sobre a blindagem tosca da torre de vigia, chamou num murmúrio:
            -Meu sargento? -Olhei para cima - logo mostro-lhe um retrato da minha noiva.
(…)
            Quando acabei a ronda e demandei o bar que servia também de local de permanência do oficial de dia, o sol, acima do horizonte, retalhado e avermelhando tudo com o seu sangue espargido pelas nuvens, matas e picadas, reverberando nos telhados de zinco das nossas pobres habitações, faiscando lume no cobre das longas antenas filares, tentava recompor o seu disco para os lados de Cuimba. A poente, nuvens cinzentas, cor de chumbo, bebiam na orgia de sangue e tingiam-se também, preparando-se para, no fim do dia, servirem de sudário e talvez chorarem copiosamente o desaparecimento daquele tirano abrasador.
Do frigorifico retirei uma Coco-Pinha, mostrei-a ao oficial de dia que se espreguiçava a um canto depois de uma noite mal passada. Com um gesto, recusou a minha oferta e demandei a saída.
(…)
In” Delta Five Lima Alfa”, de J.E.Navarro
 
 
 
 
           
publicado por gatobranco às 11:55 | link do post