OH MUXIMA
Os tempos do “Norte” acabaram. As seguranças às colunas de
reabastecimento tambem. Com essas operações ficámos a conhecer muitas
terras dos Dembos: - Nambuangongo, Quipedro, São José de Encoje,
Vista Alegre…
Agora, aqui na Muxima a fazer lembrar o Duo “Ouro Negro” é um descanço,
com o rio Quanza mesmo aqui ao lado, um rio tenebroso, de grande
caudal e profundidade. Tinha chovido há dois dias para o lado da sua
nascente. A barragem de Cambembe que fica para nascente da Muxima
teve de fazer uma descarga de segurança. O rio subiu mais de um metro.
Eu estava com o enfermeiro civil no Cais de Desembarque, quando noto uma cena que ainda hoje me não esquece: - Rio abaixo vinha uma ilhota com um coqueiro e uma cubata! Chamei a atenção do enfermeiro que me informou ser natural.
Os pretos gostam de ter as suas habitações junto à água e de vez em quando, quando a chuva é muita, sofrem estes dissabores.
O tempo depois da chuvada tinha ficado quente. Resolvi ir até à caserna, um armazém cedido pela administração. Sempre era mais fresco.
Tirei a camisa que dependurei na barra da cama, e para ali fiquei naquela
modorra, olhos fechados saboreando o nada fazer.
Nisto ouço entrar na “caserna” a lavadeira, uma pretinha dos seus dezoito anos.
Olha em volta e não vê nenhum tropa. Entretanto chega um soldado
e pergunta-lhe se é ela que vem buscar a roupa para lavar, como a querer
meter conversa.
- Sou eu, os tropa disse que havia roupa para lavar!
- Está ali dentro diz o soldado. E leva a moça para o fundo da caserna. Puxo o “quico” para a frente dos olhos e fico curioso com a conversa do soldado, para a lavadeira.
- Olha, dou-te dez angolares!
Mau, pensei eu, aqui há mais do que roupa para lavar.
- Tá bem, então dou-te vinte escudo do “Puto”
Ela continuava a não estar convencida. Ele insistia:
- Vinte escudos é muito dinheiro, e vê que eu sou sargento…
Olho para o local onde tinha dependurado a minha camisa. Já não estava lá…
A moça irritada, diz:
- No mataco não, nem que fora um Tinente.
Pega no braçado da roupa e sai caserna fora!
Ribau Angola,64
NATAL DE 1963, EM ANGOLA
Um dia, já lá vão quarenta e dois anos. Foi no dia vinte e quatro de Dezembro de 1963, estou a recordar-me no silêncio da noite, como se fosse agora.
Estava a nossa companhia de serviço ao “Cinturão Verde” – zona de protecção da cidade de Luanda, com arame farpado desde o aeroporto até aos “musseques” – e a nossa missão era identificar quem entrava ou saía da cidade.
Tínhamos jantado isolados. Teria de haver cuidados redobrados já que a noite seria propícia à entrada do inimigo.
Os cigarros, únicos companheiros com quem conversávamos no silêncio da noite, eram consumidos rapidamente entre as mãos ou dentro do capacete para não podermos ser localizados.
Cigarro atrás de cigarro, foram consumidos os três maços que tinha levado para esse dia.
E agora? São vinte e três horas. É dia de Ceia. Está tudo fechado. Como vou passar o resto da noite?
Bem…pensei eu! Chamei o condutor do jipe. O “Tavira” apareceu meio ensonado:
- Diga meu Sargentol.
– Vamos ao musseque. Preciso de cigarros e pode ser que por lá esteja alguma tasca aberta. Fomos andando de vagar, vendo o estado do arame farpado. Tudo em ordem, menos a tal tasca que poderia estar aberta. Parámos. O silêncio parecia total, até que da loja do cabo-verdiano saíram dois pretos cambaleando de bêbados. Aproximámo-nos e os pretos fugiram conforme podiam e desapareceram na escuridão da noite. Entrei na loja e pedi dois maços de cigarros. Paguei e fiquei encostado ao balcão aconselhando o homem a fechar a loja para evitar problemas como aquele a que tinha assistido, e ir consoar com a família.
- Não tenho cá família, disse-me ele. Está na minha terra, em Cabo Verde
- Então o que faz aqui sozinho a estas horas?
- Estou a ouvir esta música: e aumentou o volume do rádio para eu ouvir também…
A Rádio Ecclésia transmitia músicas de Natal. A que comecei a ouvir foi “ Noite Santa Noite Serena”, cantada pelo conjunto coral “Os Pequenos Cantores de Viena”.
Automaticamente a minha mente mudou-se para a minha terra – os meus filhos, a minha mulher, os meus pais, enfim a minha família…a Ceia de Natal na casa do forno, estavam tão longe e ali tão perto na minha memória!
Abandonei a loja, acenando com a mão ao cabo-verdiano sem o olhar para não ser traído pelas lágrimas que me corriam pela face abaixo.
Chegado à viatura fiz sinal com a mão ao condutor para que seguisse.
- O meu furriel está bem? Perguntou o Tavira
- Segue, acenei-lhe eu…
Quando um homem chora tem com certeza uma razão muito forte para o fazer!
A.Ribau Teixeira (Memórias de um ex-combatente)