LINHA DE CASCAIS
Uma guerra tão longa como foi a chamada “Guerra do Ultramar”, empenhando milhares de jovens cidadãos, associada a uma “Descolonização” apressada e sem regras, gera sequelas que, acidentalmente, em circunstâncias favoráveis vêm ao cimo.
Por vezes, são contornadas. Outras, explodem.
A todos os títulos, tinha sido um dia mau.
Logo pela manhã, um engarrafamento já próximo da estação, fizera-me perder o comboio habitual. No escritório, o chefe de secção olhou-me circunspecto, pesando o motivo invocado para o atraso. Acabou por me virar costas sem uma palavra. Privilégio de chefe. Chefe mal educado.
A segunda infelicidade surgiu como um incómodo indefinido quando virei a folha diária do calendário de mesa. Treze de Julho? Havia qualquer coisa ligada àquela data. O quê?... Um aniversário? De nascimento? Morte? Não consegui lembrar-me, mas aquele treze pulsava à minha frente, insidioso. A meio da manhã, acabou-se a tinta da fotocopiadora... A Aida estava de férias e, na sua ausência, era sobre mim que recaia a suja tarefa de meter novo cartucho de tinta.
O peixe do almoço estava intragável. Não acredito em superstições, mas aquele treze estava a cumprir a tradição que lhe é atribuída. Treze de Julho? O incómodo voltou, indefinido, subliminar.
Viajando de regresso, entre o Cais de Sodré e Oeiras, de comboio, por volta das dezoito horas, com a carruagem bem lotada, mas sem passageiros de pé, na primeira paragem entraram três meninos negros, muito endiabrados. Correndo pelas coxias, empurravam-se uns aos outros e tombavam frequentemente sobre os passageiros sentados. Sem um pedido de desculpa, prosseguiam na sua diversão. Uma senhora feriu-se levemente na face quando um deles lhe bateu nos óculos. Na carruagem seguiam cinco adultos de etnia africana que se divertiam imenso com o estranho comportamento dos seus congéneres, até porque a "brincadeira", em momento algum, os importunou.
Perto de mim viajava um indivíduo branco, de cerca de cinquenta e poucos anos, ostentando no braço esquerdo a tatuagem de uma companhia de comandos que fizera serviço em Angola. A data inscrita na tatuagem explicava que a sua permanência na ex-colónia não tinha sido um passeio turístico.
A data! Sim, era isso! Treze de Julho!... Trinta anos! Quase uma vida... treze de Julho, data das primeiras baixas em combate, numa tarde amena, com uma brisa ligeira a ondear o capim, lembrando uma grande seara do Alentejo.
Disfarçadamente voltei a mirar a data. Tinha lá estado depois de mim. Maxilas cerradas, cabeça imóvel, só os olhos seguiam a brincadeira estúpida e provocatória dos jovens negros. E chegou a sua vez de receber no colo um dos tais meninos, cuja idade não ultrapassaria os doze, treze anos. Com bondade, mas com muita decisão, pediu-lhes que acabassem com a brincadeira porque se voltasse a ser incomodado, " as coisas podiam correr mal". Dito isto, acomodou-se no seu lugar. Os meninos, os três, entreolharam-se, linguajaram entre si e, abraçados no meio da coxia, começaram a tremer, compondo expressões de pânico, entrecortadas por risadas escarninhas. O ex-comando manteve-se indiferente, parecendo fruir a paisagem exterior. Subitamente, um dos meninos empurrou os outros dois que, facilitando a manobra, atingiram violentamente o homem de cabelos brancos. Este, mais atento do que o que queria dar a entender, recebeu facilmente o impacto, derrubou um, esbofeteou o outro, levantou o que estava prostrado na coxia e deu-lhe idêntico tratamento, enquanto o terceiro se escapulia para outra carruagem.
Do grupo de congéneres negros, aqueles que tanto se divertiam com a actuação dos meninos rabinos, elevou-se um coro de protestos contra a brutalidade daquele branco contra "menino que só quer brincar" e um deles, de ar possante, levantou-se e ameaçou "fazer justiça". Encarando porém com os olhos brilhantes do ex-combatente, lendo neles algo que não lhe agradou, sentou-se e refugiou-se no seu "estranho linguajar".
Pela carruagem perpassou um abafado murmúrio de aprovação dirigido ao homem dos cabelos brancos que, no seu lugar, tremia, as unhas afundadas nas palmas das mãos, lutando contra fantasmas subitamente libertos do armário em que estavam precariamente acorrentados.
Na paragem seguinte à do incidente, os negros adultos saíram. Deslocando-se em direcção à porta, um deles, baixou-se ligeiramente e sussurrou ao meu companheiro de banco: “Vais t’arrepender...”
Tremia tão violentamente que não hesitei em lhe pôr a mão no braço. Saltou como se o tivesse queimado.
--Calma – murmurei aumentando a pressão e acrescentei – também lá estive, sei o que às vezes sentimos...
--Obrigado! – agradeceu circunspecto e voltou a fixar o olhar no nada.
Saí em Oeiras, ele prosseguiu viagem.
Dias depois, por mero acaso – eles existem – li que, na linha de Cascais, "um cidadão de meia idade, cabelos brancos e com tatuagem da guerra de Angola", dera entrada num hospital, gravemente esfaqueado, salvo das mãos de um numeroso grupo de africanos por um corajoso taxista que passava.
JUL-01
( J. Eduardo Tendeiro)
Angola, 62/64