O sino, roufenho e dolente, no velho campanário da igreja daquela envelhecida aldeia bem no centro da BeiraAlta, anunciou Morte.
Na horta, Maria Delores, ergueu-se de entre as couves altas, atenta confirmou a natureza do toque e, para o seu companheiro de meio
século, inquiriu:
-- Quem terá sido, sabes?
Com um encolher de ombros, o visado respondeu:
-- Quando viemos para cá, ainda não corria nada. Deve ser alguém de cá que estava fora.
Resignados, retomaram as suastarefas com a promessa de, quando regressassem, passarem na casa do sacristão,se antes não circulasse por ali alguém com a notícia.
O sino calou-se talvez para anunciar as nove horas que repetiu pouco depois e remeteu-se ao mutismo que quebraria meia hora depois com uma badalada seca.
Na Internet, no facebook, no telefone e em mensagens de telemóvel, a notícia cruzou o país, inesperada: “O Estrela Morreu”.
Começaram a chegar cedo, na manhã do dia seguinte. O sol, num acto de colaboração, varrera as nuvens da noite e resplandecia nos velhos telhados, ainda molhados. No granito das vetustas paredes, pontos mágicos brilhavam numa miríade de cintilações de boas vindas aos que se iam agrupando no largo da capela mortuária. O primeiro foi o Serra,o cabo Serra perpétuo guardião do guião da Companhia de Caçadores Especiais.
Pouco depois, no mesmo carro chegaram os dois sargentos do pelotão que, com o Estrela, tinham enfrentado muitas dificuldades e partilhado raras alegrias.
Orientados pelo guião da Companhia, já erguido acima das cabeças, juntaram-se ao cabo Serra. Os abraços foram discretos e as palavras murmuradas em surdina.
O padre Alves, do Batalhão, não se demorou nos cumprimentos, esteve alguns momentos na capela e demandou o grupo que ia crescendo. O alferes Santos chegou sozinho num “topo de gama”. Estava bem na vida, mas não deixou de corresponderao primeiro toque de rebate. Noutro carro, com a lotação esgotada, compareceram elementos da Companhia e um escriturário do batalhão. O cabo cifrador e o sargento de transmissões chegaram em caravana.
Considerando encontrarem-se já em número representativo, entraram na pequena capela, cercaram o féretro e sob orientação do padre Alves, rezaram em coro. Vozes fortes, tocadas pela amargura do amigo perdido, fizeram vibrar as paredes da capela e encheram de lágrimas os olhos dos presentes. Depois, em fila, cumpriram o ritual dos pêsames à Mãe e irmão do Estrela que, com o seu camuflado coçado de dois anos de vicissitudes –exigência testamentária do defunto – parecia sorrir. No peito, do lado esquerdo, uma estrela pouco menor que a palma da mão, luzia as suas cinco pontas.
Terminado o ritual, voltaram a cercar o corpo do Estrela. Fixando-o, o então sargento miliciano Carlos, não conteve um arrepio: fora assim, fardados, que dois amigos tinham ficado lá, enterrados num cemitério provavelmente já vandalizado ou perdido debaixo do capim alto.
O pároco da freguesia chegou com o sacristão tilintando a campainha, trocou breves palavras com o padre Alves, assentiu com a cabeça e oito ex-combatentes, depois de colocada a tampa docaixão, carregaram-no em ombros para a carreta desprezando o carro funerário preparado para a trasladação do corpo para a igreja e foram eles que puxando, empurrando e ladeando o encaminharam para a estrada que os levaria ao destino.
No templo, com características românicas restaurado no século XIX conforme constava da lápide ao lado da porta, os já raros habitantes da envelhecida aldeia ocupavam pouco mais que metade dos bancos. Um frémito de emoção perpassou pelos presentes quando aquele grupo de anciãos, uns carregando em ombros o féretro, outros, hirtos, ladeando-o, em passo lento, atravessaram a igreja e depositaram o corpo no cavalete previamente montado, iluminado por falsa velas que tremeluziam como se fossem reais.
Concelebrando com o padre Alves, o pároco esmerou-se nas exéquias de circunstância. No momento próprio, o ex-alferes Santos, procedeu ao elogio fúnebre enumerando as características do defunto, afirmando que ele tinha uma excelente formação moral reconhecida por todos, abnegado até ao sacrifício pelo próximo e, para ilustrar, contou um episódio de guerra que, segundo o orador, não podia calar.
“Quando falo em abnegação e entrega ao próximo, não exagero. Os que aqui estão e com ele conviveram naqueles dias difíceis sabem-no bem e eu, muito melhor que todos. Se estou aqui vivo, a ele o devo. Quando percorríamos a pé uma estrada, à frente das viaturas, pesquisando minas, o Estrela e eu íamos à frente atentos a qualquer sinal na estrada que nos pudesse alertar para aquele tremendo perigo. De súbito, sem qualquer aviso, o Estrela atirou-se contra mim, derrubou-me e ambos rolámos no pó da picada com pretensões de estrada…”
O ex-militar parou, não por efeito retórico mas porque a voz, embargada, se lhe tinha esgotado.
Retomou o discurso sem que o mínimo sussurro tivesse manchado aquela pausa:
“Desculpem. Já lá vão quase cinquenta anos e ainda não consigo falar isto sem me emocionar. Sabem por que é que ele me empurrou e derrubou? Porque se apercebeu que eu ia pisar uma mina que não tinha visto e que ele detectara. Sem tempo para me prevenir, arriscandoa própria vida pois podia ter caído sobre a mina, não hesitou em saltar e me empurrar, salvando-me a vida”--Virando-se para o corpo exposto, concluiu –“Obrigado Estrela”
Alguém bateu palmas timidamente mas ateou o rastilho de uma ovação que, provavelmente, pela primeira vez fez vibrar aquelas paredes centenárias.
No grupo dos ex-militares, o Costa sussurrou: “Também podia ter referido que me carregou ao longo de vários quilómetros quando parti a perna”.
-- E quando ele ficou com o meu serviço, quando me deu o paludismo, só para não alterar a escala? – Comentou entre dentes o Aires.
--Bom amigo que nós perdemos,concluiu o do guião.
Terminada a missa, os funcionários da agência funerária limitaram-se a cerrar a urna, porque aqueles anciãos amigos do Estrela, não lhes consentiram qualquer outro movimento. Eles próprios a carregaram para a carreta e, depois de acomodada a quase centenária mãe do Estrela no carro funerário,
puxando a carreta, atravessaram a aldeia em direcção ao cemitério ladeados pelos irmãos de duas confrarias com as suas opas vermelhas e azuis, a bandeira nacional cobrindo o caixão.
Ali aguardava-os a representação da liga dos Combatentes com a respectiva bandeira, o destacamento da unidade mais próxima e mais dois ex-combatentes que, atrasados tinham rumado directamente ao cemitério. Um deles, o corneteiro da companhia, com breves piscar de olhos, discretamente, mostrou a pequena e reluzente corneta.
De novo ao ombro dos amigos, o caixão do Estrela serpenteou entre algumas campas até atingir o monte de terra molhada que anunciava a cova recém aberta.
No céu, a nascente, num acto de recolhimento, nuvens negras entretanto acumuladas, taparam o sol.
Encomendado a Deus e aos Santos, uma vez mais o hissope pela mão do pároco e do padre Alves aspergiu a urna e a cova, o destacamento procedeu à salva de tiros e, quando o caixão baixava à cova o ex-corneteiro arrepiou os presentes com os seus toques de sentido e de silêncio. Lágrimas deslizaram imparáveis buscando as rugas daqueles rostos envelhecidos e crispados. Perfilados, imóveis ignoraram-nas, olhos fixos no amigo que a terra, pouco a pouco tragava.
Discretamente retiraram-se, dando lugar à família e demais pessoas da aldeia. Reunidos para lá da estrada, frente à porta do cemitério, abraçaram-se os que ainda o não tinham feito, o ex-alferes alegando uma viagem de avião inadiável, encaminhou-se apressado para o largo da capela onde tinham deixado as viaturas, mas os restantes conversaram recordações de guerra, dos dias tristes do norte de Angola.
O Meireles, meneando a cabeça calva, afirmou:
-- Nunca pensei que ele guardasse tanto tempo aquela estrela! Lembram-se onde a encontrou?
O Costa não teve dificuldade em responder:
--Foi naquela malfadada operação de cerco e assalto a uma sanzala vazia. Os gajos tinham dado o salto à nossa aproximação…
--Mas tramaram-se, completou o primeiro. Levámos porcos e galinhas para umas semanas, sem contar com bugigangas, até um rádio de pilhas… foi aí que o Estrela encontrou aquela estrela, talvez adorno de uma preta e a constituiu em seu amuleto. Nunca mais a largou…
-- Nem largará jamais! Levou-a consigo.
As nuvens acasteladas anunciaram o fim da trégua e pingos esparsos salpicaram o alcatrão.
O cabo Serra, depois de acomodar o guião no respectivo estojo, sempre prático, consultando o relógio, informou e propôs:
--Já passa do meio-dia, parece que vai chover… por que não comemos qualquer coisa antes de destroçar?
--Eu vi um restaurante aqui perto. Vamos lá? — aliciou outro.
Todos concordaram e puseram-se a caminho das respectivas viaturas, mas o Meireles avisou:
-- Vou ver se o padre Alves quer vir connosco. Vão andando que já vos apanhamos.
Vergados não tanto pela idade como pelo desgosto do amigo inesperadamente perdido, afastaram-se do cemitério. Um pouco atrás, o Bento agoirou:
-- A seguir vou eu…
--‘tás parvo, pá! Não me disseste que ainda há poucos dias mudaste a pilha do coração?
-- Mas olha que já não a gasto, é cá uma sisma minha.
Fim
Homenagem sentida ao Estrela, a sua Mãe e família, sejam quais forem os
seus nomes na vida real.
in Apontamentos
J. Eduardo Tendeiro
(Ex combatente. Angola, 62/64)
CCE 306