O AGRICULTOR GAFANHÃO – 1
Chegados àGafanha, cada um foi para sua casa, tendo combinado que no dia seguinte
estariam nos viveiros lá para as oito horas da manhã.
O tempo estava na verdade melhor no dia seguinte, e, manhã cedo, lá fomos nós, o pai de
gadanha e engaço ao ombro e o Toino com as duas varas, em direcção à bateira.
O dia não era de chuva, mas a manhã estava fria. Notou-se logo ao meter os pés na
lama para alcançar a bateira. Soltada esta do moirão aí vamos nós para Esteiro do
Oudinot. Salto para a margem com a cirga na mão, estico-a ponho-a ao ombro, e
vá de puxar a bateira. São dois quilómetros de extensão, contra a maré. Chegado
ao fim é recolhida a cirga, entro para a bateira, pegamos nas varas e vá de atravessar
a cale, sempre com muita atenção, não vá aparecer algum navio, que nos
atrapalhe a manobra. Chegados ao fundão, vá de “paijar” com as varas como se
fossem remos, dado que a cale era muito funda e as varas não atingiam o fundo.
Passámos sem problemas e da outra banda voltámos a empurrar a bateira com as varas, até
que chegamos à marinha, amarrámos a bateira e toca de começar a trabalhar. O
pai do Toino a gadanhar o estrume e o Toino sempre com o olho à viva, (não
fosse aparecer outra cobra) ia-o juntando e enfeixando na corda. Quando o molho
estava com a quantidade suficiente era amarrado. O Pai puxava a corda de um
lado e o Toino do outro, apertavam-no, davam um nó, o pai ajudava a pô-lo na
cabeça do Toino, e aí vai ele correndo com o molho de estrume à cabeça, sempre
a pensar nalguma cobra…
Este serviço repetia-se vezes sem conta, até que a bateira estivesse carregada.
Depois era o regresso pelo Esteiro do Oudinot, o carro dos bois à espera, o
descarregar da bateira…
Este serviço era executado dias sem conta, sempre que o tempo o permitisse, até que
houvesse estrume suficiente, para as camas do gado durante o inverno, que aí
vinha.
O tempo ia piorando. O vento e as chuvas anunciavam o tempo que aí vinha, a
chegada do inverno. Já havia dias de chuva, que permitiam ao Toino ler uns bons
pedaços do livro que andava a ler, até ser “acordado” do sonho que a leitura
lhe provocava, por ordens do pai que dada a ordem continuava na sua leitura:
-Oh Toino vai dar uma gabela de palha aos bois, ou;
-Dá uma gabela de erva à vaca.
O Toino deixava a leitura, e ia confirmar a ordem junto do pai, não que não
tivesse ouvido bem, mas para confirmar qual o livro que o pai estava a ler.
Punha o olho de lado, e lá ia cumprir a ordem.
De regresso, ainda se atreveu:
-Olha lá oh pai, quantas vezes já leram esse livro? (era o Mártir do Golgota) …
-Não sei, mas gosto muito dele. Tem aqui uma personagem que me faz pensar: e
continuou; era o cantor da Galileia, e ia fazer serenatas a Madalena a
pecadora. Chamava-se Boanerges. Se um dia tiver um neto gostava que lhe dessem
esse nome…
E lá continuavam, cada um com a sua leitura, até que da casa do forno se ouviu a
vós da mãe:
–Eh pessoal, vamos à janta que o comer já está na mesa!
Só nessa altura o Toino se lembrou, de ter ouvido o meio-dia tocar no sino da igreja.
E lá deixaram as leituras e foram para a mesa. O Toino olha para a comida e
resmunga:
–Mais uma vez caldo de feijões…
– E é para quem quer, responde-lhe a mãe, Se não quiseres vai para a panela e
fica para logo à noite. Nesta casa não se estraga nada…
E como naquela casa só se falava o necessário, a solução era comer do que havia e
bico calado!
O tempo ia passando, sem o Toino fazer ideia do que aí vinha, Agora era tudo um
mar de rosas. Ler, ir ao pasto para os bois, fazer qualquer outro serviço que
fosse necessário, e ler, ler!
Mas o tempo começava a esfriar ainda mais. O vento assobiava por entre os ramos das
árvores agora já nuas, sem folhas. O inverno estava a chegar e parece que iria
ser de muito frio.
-O futuro o dirá, foi a resposta do pai do Toino à pergunta do filho sobre o
assunto. Ele, que no verão prevía o tempo, agora mostrava uma certa reserva,
sobro o inverno que se aproximava. Parecia preocupado!
-Comprámos o moliço dos viveiros da Corte do Paraíso, e temos de o apanhar antes
do fim de Fevereiro e transportá-lo para as terras. O tempo de o apanhar está a
chegar. Comprei o moliço mais dois dos teus tios e domingo vamos combinar
quando começamos a apanha-lo! Vai começar uma época de trabalho.
-Com o frio que parece vir aí, deve ser bonito, pensa consigo o Toino! Ele que
já tinha sentido o frio que a geado provocava nos pés, ao pisar a lama branca
de geada. Só não compreendia que, no tempo em que andava na escola primária,
quando geava, a sua mãe o obrigava a levar tamancos de sola de madeira, que
eram normalmente comprados na feira dos treze, na Vista Alegre.
No entanto, mal desaparecia das vistas da mãe, era vê-lo a pegar num tamanco em
cada mão, e toca a correr, que para os lados da Escola da Ti Zefa já se ouvia a
algazarra da malta a jogar a bola - tudo descalço - e não havia frio que se
sentisse. Topada numa pedra sucedia de vez em quando; mas nada que um trapo ou
um lenço amarrados no local ferido, logo ali, não resolvesse!
-Grandes tempos aqueles! - Pensava consigo o Toino. Agora havia
que trabalhar, e o que aí vinha não era trabalho “mole”…
Chegouo domingo à noite e foi – lhe dado conhecimento da resolução da apanha do
moliço.
-
Mas pai, diz-lhe o Toino. Estamos em Janeiro e o tempo está tão frio! Podíamos
ir um pouco mais tarde…
-O frio não faz mal nenhum, cura…
-E o trabalho aquece – foi a resposta…
-
Este homem tem sempre uma resposta resmungou o Toino, pensando já no frio que
iria passar…
Começava mais uma época de trabalhos, que era exclusiva dos marnotos da Gafanha, já que
os de Aveiro não tendo terras se limitavam a consumir o tempo, visitando de vez
em quando a salina, acautelando alguma “ cambeia” que as marés vivas tenham
provocado, ou passeando debaixo dos arcos do Hotel Arcada, local soalheiro e
abrigado dos ventos do nordeste, que no inverno enregelavam o corpo até aos
ossos…
Enfim,cada qual nasce, para o que nasce!
E para o Toino não era nada bom ser filho de lavrador.com terras!
lá foram na segunda-feira seguinte para os viveiros da “Corte do Paraíso”
começar com a apanha do moliço. O pai do Toino com um ancinho e a gadanha ao
ombro, o Toino com um ancinho, montam cada um na sua bicicleta e toca a andar
em direcção ao “Paraíso”…???!!!.
Atravessaram a ponte de madeira que liga á estrada que dá a Aveiro e aí foram em direcção
aos “moinhos”, onde se localizava o Paraíso.
O vento norte corria de mansinho, mas frio como gelo. As orelhas e as mãos
sentiam-no bem. Pior seria quando tivessem – ao chegar ao viveiro – de tirar as
calças, ficar em cuecas e entrar na lama.
Enfim, veremos; ia cogitando o Toino, tentando meter uma mão no bolso e conduzindo a
bicicleta sem mãos.
Chegaram.
Calças fora, cuecas arregaçadas e toca de descer para o viveiro.
-
È pá, diz o pai do Toino para um cunhado. Está mesmo frio…
-Toca a gadanhar para aquecer. Enquanto nós cortamos o moliço, o Toino com o ancinho
vai-o juntando em montes pequenos para depois serem “zurrados” (empurrados)
para junto da estrada, d´onde mais tarde serão carregados para os carros de
bois, que o conduzirão às terras, na Gafanha.
Com o correr do dia, e como o céu se encontrava límpido, o sol ia aquecendo o ar
ambiente, mas não a lama onde se enterravam os trabalhadores. O corpo com o
trabalho, aquecia. Mas as pernas e os pés, valha-lhes Deus, nem os sentiam…
Lá
para o meio da tarde o sol
começou a descer no horizonte, para os lados do mar. A temperatura começou
também a descer, o ar ambiente ia ficando cego, uma espécie de pó finíssimo
pairava no ar. Para o fim da tarde
o ar já enregelava os ossos!
-
Mau, mau, diz o cunhado Zé. Se isto assim continua, amanhã vai ser o bom e o
bonito – querendo com isto dizer que seria ainda um dia de mais frio –
esperemos que o tempo não encubra, porque então vai ser frio de rachar…
A
noite ia chegando e resolveram regressar a casa.
-
Por hoje chega de trabalho, diz o pai do Tónio, que era o mais velho dos
cunhados. Vamos até casa, que amanhã também é dia.
Lavaram
a lama das pernas e dos pés, enfiam as calças e aí vão de abalada até à
Gafanha.
Porca
de vida, ia pensando o Tónio enquanto pedalava em destina à Gafanha. Isto não é
vida para mim. Isto não pode continuar. Tenho de pensar noutro modo de vida.
Não se passa fome, mas o trabalho é de escravo! Lá que o pai e os tios, aceitem
este modo de vida certamente por não terem alternativa, é lá com eles.
Eu é que tenho, não posso aguentar este modo
de vida. Não sei o que ganho. Só sei que trabalho que nem um escravo, embora os
meus catorze anos!
Há muito que a noite trouxera o silêncio. A despeito de manter os olhos abertos,
mal conseguia vislumbrar os adobes da parede. Uma pergunta nasceu em mim e
tomou forma: “ E se tivesses queescolher entre aquela vida tão dura e esta que tens agora?”
Tateando, escorreguei por entre os cobertores, encontrei posição, cerrei os olhos e aguardei o sono que
tardava.
Pouco faltaria para que o sol deslizasse pelo zinco dos telhados e inundasse o
acampamento de Pangala.
Ângelo Ribau
CCE 306