O embarque

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O    E M B A R Q U E

 

 

 

 

 

 

 

 

 

LISBOA, 28 DE ABRIL

 

 

DE   1962

 

 

 

 

             Narrado por

            J. Eduardo Tendeiro

 

                            Fotos cedidas por

                            M.Miranda

                            R. Costa Pereira

                            Ribau Teixeira

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Longas horas de comboio deixaram-nos no cais de embarque.

Acostado à doca, um velho paquete das linhas coloniais – o Quanza – aguardava adormecido.

Carregando todo o equipamento individual, ainda estranhos nos seus camuflados novos, os militares espraiaram-se por todo o espaço do cais, alguns procurando ávidos o familiar ou amigo que prometera estar presente naqueles derradeiros momentos.

 Na varanda que sobressaía por cima do cais havia agitação, gritavam-se nomes, acenava-se e um tosco cartaz proclamava” Miguel, estamos aqui”.

Indiferente à dor e nervosismo que percorria os militares, um guindaste iniciou a tarefa de meter no ventre do paquete a bagagem de porão.

 

 

 

 

 

 

Um copo de café quente retemperou se não os ânimos, pelo menos o estômago que, contraído, se contentou com pouco.

 

 

 

 

 

Peremptório, tinha proibido qualquer familiar de se expor àqueles momentos. Era desnecessário e só serviria para adensar a dor da separação eivada de incertezas quanto ao regresso.

A despeito da posição assumida para com a família, um primo de minha mulher, em terceiro ou quarto grau, mas bom amigo, morando em Lisboa não quis deixar de me dar uma palavra de conforto. Para ele, aquele ritual não era novidade. Já o tinha cumprido com um filho então em Camabatela.

Consegui que não ficasse para os últimos momentos e despedi-o com um longo abraço que prometeu repartir com a minha mulher.

Pouco a pouco, como ovelhas tresmalhadas, os soldados, depois de uma última hesitação enfrentavam as escadas do portaló e procuravam lugar na amurada, os mais destemidos trepando para as baleeiras ou para os mastros.

Um ronco curto do monstro foi o sinal de que o momento chegara.

Como formigas, demandámos as escadas de acesso do navio, empurrados pelos que vinham atrás.

Sem para isso ter contribuído, encontrei-me apertado contra a amurada. O Quanza, acusando o peso de quase um milhar de militares acumulados a estibordo, inclinou-se numa vénia. O espaço antes ocupado pelos militares era agora preenchido por familiares que, vencendo possíveis barreiras, tentavam uma proximidade final dos que abalavam.

O comandante do batalhão, acompanhado pelo porta-estandarte e mais alguns oficiais, subiram as escadas de acesso ao barco, encerrando o embarque das tropas.

Retirada a escada, pessoal de bordo soltou as amarras que na proa e à ré ligavam o barco a terra. As grossas cordas libertas das suas prisões, como cobras, rastejaram pelo convés e mergulharam na água com um som sinistro, arrepiante.

Três roncos cavos, uivos de mau prenúncio saíram das entranhas do barco. Um pequeno rebocador, afocinhou o monstro à proa, criando distância do casco ao paredão do cais.

À ré a água suja da doca turbilhonou e com frémito de velho inseguro nos seus passos, o Quanza auxiliou o trabalho do rebocador.

Gritos lancinantes e acenos frenéticos cresceram entre os que ficavam. No meio da multidão, uma jovem levantava acima da cabeça uma criança de tenra idade que, assustada, chorava.

Recuei, o meu lugar foi tomado de assalto e acendendo um cigarro com mãos trémula, encaminhei-me para a amurada de bombordo, deserta.

Imponente, hierático, o Cristo Rei, talvez indiferente à tragédia que se desenhava no cais onde lenços brancos, desvairados, alongavam o adeus dos que ficavam, de braços abertos, parecia contemplar friamente aquele cenário de dor.

Se acreditasse em promessas, seria o momento de fazer uma, prometendo ao Cristo Rei qualquer coisa se ele me concedesse o favor de eu voltar vivo. Mas as promessas a Deus sempre tiveram para mim o aspecto de um negócio, de um forcing “ Se me concederes isto, dou-te aquilo”

Por entre o fumo do cigarro que me marejava os olhos, afirmei fitando-O:

“Vou voltar e quero esses braços bem abertos para me receberes.”

 

 

Fim

publicado por gatobranco às 16:28 | link do post | comentar