ARROBAS

 

  

 

 

 

Arrobas ou Arroba-arroba, a sua designação de correio electónico provinha de uma brincadeira de amigos : quando se propôs mudar de endereço electrónico e pediu sugestões, a maioria deles, tendo em consideração as suas seis arrobas de peso mal distribuídas por um metro e sessenta e dois de altura e fazendo ele gala nas suas arrobas, votou inevitavelmente Arrobas ou Arroba/Arroba e, com bonomia, João Carlos aceitou Arrobas.

Sem ser um viciado, a sua vida girava bastante em torno do computador. Iniciava o dia com a leitura das primeiras páginas dos jornais, lia alguns desenvolvimentos, consultava a meteorologia e, nos serviços, pesquisas e relatórios passavam inevitavalmente pelo seu computador.

À noite no isolamento do pequeno apartamento de solteiro, depois de comer a refeição que ele próprio preparava na maior parte das vezes, regressava ao computador para , com uma música de fundo do seu agrado, se dedicar à leitura e resposta das mensagens dos seus correspondentes, quase meia centena, entre eles alguns dos companheiros de armas da já distante guerra de África. Distante, mas frequentemente presente. Quando as G3 em concerto explodiam na sua cabeça faziam-no voltar aos ansiolíticos que, anos atrás, depois do regresso, tomara às mãos cheias e que o tinham tornado naquela figura rubicunda a qual, por desânimo e desleixo, aprimorara com uma alimentação desregrada.

 

De um modo geral todos cumpriam a regra de eliminar os endereços das reexpedições, mas havia uma senhora que não se dava a esse trabalho e as suas mensagens surgiam sempre antecedidas de uma longa lista de endereços. Num dia em que o número de mensagens tinha sido anormalmente baixo, o cibernauta dedicou-se à análise daquela interminável lista. Nomes exóticos, foram desfilando: Passarinho-da-ribeira, aranhiço, rosa dobrada, claralinda, preto, meudestino, guiduxa e uma infininidade de outras idiotices.Entre elas sobressaia uma lacónica m.armandinha.

Com um sorriso de prazer compôs o endereço numa nova mensagem e escreveu o texto:

"Armandinha? Gosto! Quem és tu?"

No dia seguinte a resposta aguardava-o:

"Sou a Armandinha. E tu, Arrobas, quem és?"

Deliciado, o cibernauta não tardou a responder:

"Sou o Arrobas – sorriu face à realidade – Quero saber mais coisas de ti"

A resposta demorou a chegar e quando o cibernauta quase tinha esquecido a brincadeira com "Armandinha", chegou em letra cursiva com fundo cor-de-rosa:

"Muito curioso senhor Arrobas! Mas faço-lhe a vontade. Gosto de pps com paisagens de terras distantes, viagens a países longínquos. Detesto mantras e rezas com promessas de que se fizer tantas reexpedições terei muita sorte. Detesto anedotas porcas e não aceito pornografia. Satisfeito?"

"Não! Quero saber como és. Manda-me uma foto tua".-- Digitou Arrobas.

Resposta imediata:

"Dizem que sou ingénua, mas não sou burra. Uma foto? Que garantias tens de que é minha? Pode ser a de uma amiga, de uma artista qualquer"

"Tens razão! – penitenciou-se ele – Aliás já sei muita coisa de ti, dos teus gostos, mas diz-me como és. Faz uma descrição, valeu?"

A resposta demorou:

"Não tens a menor garantia de que seja verdade, mas aí vai. Dizem que sou gira. Tenho vinte e cinco anos, não sou loira mem morena, cabelos pelos ombros, olhos castanhos. Dizem que tenho um corpinho bem feito, sou solteira, descomprometida e estou a gostar de me corresponder contigo. Agora quero eu saber como é o Arrobas."

João Carlos ficou longo tempo a olhar para o ecram, ruminando " não me digam que tenho aqui uma gaiata de doze ou treze anos a querer verbalizar uma aventura.... ou uma solteirona serôdea à pesca... cuidado, menino! Puxando para si o teclado respondeu:

"De certeza que és muito gira! Eu? – Mirando uma fotografia sua envergando um camuflado e com pistola pendente do cinto largo de lona, prosseguiu – Sou da tua idade, não sou alto, cabelo negro comprido, olhos castanhos, sessenta e sete quilos - sorriu para si -  faço desporto e gosto do teu nome: Armandinha".

Clicou no ícone Enviar e ficou a sorrir para a imagem que o vidro espelhado da janela lhe devolvia.Noventa quilos (seis arrobas), atarracado, calvo, face redonda, avermelhada, óculos de aros grossos. Gargalhou irónico.

 

Encontraram um programa de resposta imediata e ao longo de um mês trocaram futilidades, até que o cibernauta, preocupado insistiu num encontro.Receava estar a alimentar qualquer desvario de pré-adolescente.

Armandinha negou, hesitou, acabou por aceitar. Para maior facilidade de reconhecimento, ela levaria um vestido azul por baixo de um casaco branco e estaria sentada na Pastelaria Triunfo na terça feira, a partir das dezoito horas folheando uma revista de modas.

Muito antes da hora marcada, Arrobas instalou-se a uma mesa da pastelaria estrategicamente situada , permitindo-lhe abarcar toda a sala e a porta de entrada.Imaginou-se na guerra, sempre a guerra, a escolher o campo de tiro de uma emboscada.

Cinco minutos antes das dezoito, uma jovem de talvez vinte e poucos anos, vestido azul sob casaco branco, cabelos pelos ombros, elegante, silhueta perturbadora, entrou na pastelaria, correu os olhos pelas mesas, sentou-se perto da entrada e abriu na sua frente uma revista de modas femininas.

João Carlos, acoitado atrás do jornal, olhou furioso para um espelho da pastelaria que teimava em lhe devolver a imagem pouco feliz das suas seis arrobas e, empertigado, maldizendo-se e culpando a guerra, saiu sem olhar para Armandinha que, distraída, folheava negligente a sua revista de modas.

 

 

 

 

J. Eduardo Tendeiro

 

(Relato ficcionado)

8/9/10

 

publicado por gatobranco às 10:34 | link do post