A ÚLTMA PATRULHA

Acordou em sobressalto. Os ponteiros luminosos do relógio de pulso apontavam as três . Dispunha ainda de duas horas. Sabia que já nãovoltaria a adormecer, mas num esforço de vontade imobilizou-se numa posição confortável.

Desde que tivera conhecimento de que o seu pelotão fora escalado para aquela escolta invadira-o uma angústia inexplicável. Seria  praticamente a sua última  missão  de  guerra. Depois, até ao embarque de regresso
à Metrópole, à sua casa, aos seus amigos, à sua noiva, pouco mais faria. Talvez um serviço à “Rede”, um reforço, coisas de pouca monta. Mas era aquela angústia!...   E ele nem era supersticioso!

Sentiu vontade de se virar mas impôs-se aquela posição e iniciou exercícios de relaxamento. Era uma escolta como outras tantas  que fizera, algumas  com  acções  de  fogo. O  itinerário  nem  era perigoso  comparado com
outros já  trilhados, mas havia aquela espécie de angústia…

Experimentou rezar. Uma Avé Maria fluiu fácil na sua mente, o Pai Nosso demorou mais tempo a ser recordado e teve problemas com a Confissão. Desiludido tentou o Credo. Desistiu frustrado. Já tinha passado tanto tempo!
Recordou com saudade os primeiros ensinamentos da Mãe. Benzer-se. Custou a aprender que devia fazer os braços da cruz da esquerda para a direita… enterneceu-se com a aprendizagem da primeira oração. Deleitado, recitou-a:
“Anjinho da guarda/ minha doce companhia/ guardai a minha alma/ de noite e de dia”. Quanta ternura! Mas, no momento, não se tratava de guardar a alma mas sim o corpo. Faltava tão pouco para acabar aqueles malditos dois anos de dor, suor, sangue e morte. Não era justo que a poucos meses, talvez dois do seu embarque ainda o expusessem a perigos de morte.

Não está certo, Deus!
Há outros mais novos… não, não é isso meu Deus! Não Te vou pedir que mandes morrer qualquer outro por mim, não é isso! Sabes que sempre quis que não morresse ninguém!

Confuso, esquecido dos exercícios de relaxamento, retomou o pensamento:

Deus, não quero que ninguém morra, mas, desde que soube desta patrulha apoderou-se de mim uma angústia, um mau presságio! E falta tão pouco tempo para sair deste inferno de homens a matarem homens,  contrariando as Tuas Leis.

Num acto de contrição, recordou que certamente também ele já tinha infringido todas as Leis que Deus deixou aos homens.

Deus, eu não devia pedir-te nada… até porque não mereço… Dizem que tudo está escrito no grande livro da vida,   cada um de nós tem uma página em que está inscrita a nossa hora. Por vezes tens piedade de um ou outro e consentes em fazer alterações na página deles. Chamam-lhe Milagres. Nunca me importei muito Contigo eu sei, por isso não te vou pedir um milagre. Também não vou fazer-te promessas. Detesto as promessas. São uma espécie de contrato.  Uma espécie de troca. Se me concederes isto, dou-Te aquilo. Vou a pé a Fátima, atravesso o Santuário de joelhos deixando um rasto de sangue. Não acredito que queiras que as pessoas se martirizem para que lhes concedas qualquer coisa. Se Te pedisse vida para estes dois meses e  a concedesses, o que é que eu Te poderia dar em troca? Não precisas de nada, és Rei e Senhor de tudo!

De novo mudou de posição sobre a enxerga. Irritou-se consigo mesmo: Raios, é uma merda de escolta. O itinerário está pacificado. Logo à noite estou aqui outra vez…
Senhor, vou fazer por isso. Vou estar aqui logo à noite.

Espantou-se e orgulhou-se da sua certeza mas, muito lá no fundo continuava aquele incómodo. Contornou-o: claro que certezas  ninguém tem, mas as probabilidades são todas a favor. Deus, não acredito que queiras matar alguém, que deixes que me matem… Vou fazer-Te um pedido. Sem promessas. Só um pedido. Se é verdade que todos temos uma folha no grande livro da vida e se estiver lá escrito que vou morrer nesta escolta, por favor apaga isso. Deixa-me ser eu a tentar safar-me por mim mesmo.

 

Sentiu-o chegar desenhando arabescos no escuro com a luz da potente pilha. O sargento de dia à Companhia acionou os interruptores que inundaram de luz o dormitório e, com voz forte proclamou:

“Toca a levantar. Camas arrumadas. Às cinco e meia todos na cozinha. Há pão fresco, queijo e marmelada. Ração individual de combate para cada um. Cantis cheios de água"… (alguém sugeriu: Não pode ser vinho?)

 Indiferente à graçola, o sargento prosseguiu:

…” Às seis horas, viaturas em marcha" – num arremedo de simpatia, concluiu – "boa viagem!”

“Adeus, até ao meu regresso” – proclamou a voz anónima e outra convidou – “Não quer vir também?”

 

Debruçado sobre as botas que apertava com cuidado, indiferente ao ruído envolvente concluiu os seus pensamentos daquela madrugada:

Mas, Senhor, com uma ajuda Tua, tudo vai correr bem.

Recordando as tiradas latinas do seu companheiro de quarto, ex seminarista, plagiou-o:

"DEO JUVANTE"

 

Fim

(in Apontamentos – Angola, 62/64)

J. Eduardo Tendeiro 
CCE 306

publicado por gatobranco às 15:42 | link do post | comentar