O ESCORPIÃO
O ESCORPIÃO
Naqueles dias de Pangala – lá muito ao Norte de Angola, perto da fronteira – o tédio adensava-se sobre os militares ali estacionados.
Patrulhas, escoltas, emboscadas (quase sempre inconsequentes) e serviços de apoio ao estacionamento eram uma rotina que, em vez de serem dispersivos, contribuíam para adensar aquela sensação claustrofóbica que pesava sobre eles.
Nesse tempo tudo servia de entretém, qualquer coisa inusitada era recebida com agrado e naquele já muito distante dia, aconteceu.
Para os lados da cozinha, numa ponta do estacionamento, gerou-se um movimento inesperado que fez convergir para ali alguns militares.
O tenente do segundo pelotão e o sargento das transmissões cruzaram-se , arrastando-se no lodo do seu tédio, vislumbraram o alvoroço e interrogaram-se sobre o que seria aquilo.
Especado, testa enrugada, cofiando a barba áspera de alguns dias, o sargento encolheu os ombros em sinal de ignorância e o oficial secundou-o com um trejeito de lábios.
Intrigados ficaram-se os dois a mirar o ajuntamento de meia dúzia de militares dos quais se destacou um que, em passo apressado se aproximou.
Intersectado pelo tenente, o militar urgiu que tinham apanhado uma alacrária[i] das grandes, que até tinha pelo nas patas e o sargento ironizou que ele estava a fugir com medo,
Escandalizado, o interpelado profetizou que se fosse só ele, já a tinha esborrachado com a bota, mas os outros queriam experimentar uma coisa…
Face à curiosidade do oficial explicou que alguns estavam a dizer que as alacrárias, quando rodeadas pelo fogo espetam o ferrão nelas e queriam experimentar. Entusiasmado informou que ia à enfermaria arranjar um bocado de algodão e álcool para fazer uma cerca e depois pegar-lhe fogo…
Ironizando de novo, o das transmissões ironizou que a lacrária estaria muito sossegadinha à espera que lhe fizessem o cerco de fogo para se suicidar. Sorrindo com ar superior o que deixara o grupo garantiu que ela não poderia escapar porque estava dentro de uma panela grande e com esta informação apressou-se a caminho da enfermaria.
E o comandante do segundo pelotão latinou:”Requiem para scorpio/scorpionis.”
Entreolhando-se, com novo encolher de ombros, decidiram assistir ao anunciado suicídio do aracnídeo.
No fundo de uma grande panela, o escorpião tentava trepar a parede lisa do metal e um dos espectadores com um pau, enfurecia o animal para gáudio da assistência.
Já o que fora buscar os instrumentos de tortura – o álcool e o algodão – se encaminhava para o grupo quando o cabo cozinheiro se aproximou e descarregou a sua ira querendo saber que merda era aquela, ali nos seus domínios.
Brandindo o cutelo da cozinha, com um pontapé virou a panela e enquanto todos fugiam , cortou o lacrau em dois.
Encarando os algozes do aracnídeo, vociferava que ia ficar com a panela empeçonhada e que eles é que teriam de a esfregar…
Vendo que o grupo se dispersava, socorreu-se do tenente para não os deixar fugir e fazê-los cumprir a limpeza da panela.
Mas o oficial, arrastando o companheiro pelo braço, mastigando um sorriso, escusou-se assegurando que não estava de serviço e que não era nada com ele. Que fosse ao oficial de dia
O que tinha ido buscar o álcool e o algodão, sorrateiro, arrepiou caminho de regresso à enfermaria.
FIM
[i] Alacrária – Expressão popular para designar o lacrau ou escorpião.
Lacrária - O mesmo que lacrau ou escorpião. Registado no dicionário electrónico de Cândido de Figueiredo