SONHAR...IMAGINAR

SONHAR, IMAGINAR

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   Deliciado, via o filho correr atrás da bola.

   Equilíbrio incipiente, pernas arqueadas pelo volume da fralda, ele corria com um riso de prazer. Quando conseguia apanhar a bola apertava-a contra o peito e com gritinhos de alegria, corria para o pai e entregava-lha aguardando o recomeço da brincadeira.

   A mãe, discreta, sorria,  os olhos húmidos lutando contra a ruga de preocupação que lhe vincava a testa. Só já faltavam doze dias para ele abalar de novo! Depois seriam mais dez meses de pesadelo, de ânsias por uma carta.

   Ele sabia e evitava olhá-la concentrando-se no filho que incansável, não deixava de perseguir a bola. Animando-se a si próprio, esforçando-se por pôr convicção no pensamento ruminava que dez meses iam passar e depois seria a felicidade plena libertos da guerra que os separara poucos meses após o casamento. Teriam uma vida pela frente para se reverem na felicidade do seu amor. Teriam mais filhos, haviam de ter, pelo menos mais dois. Ela hesitava, talvez só mais um, mas com um encolher de ombros, adiava :

   ─ Depois logo vemos…

   À sua frente o bebé requeria  atenção oferecendo-lhe a bola. Num gesto de ternura puxou-o para si e abraçados tombaram sobre a manta que forrava o canto do terraço.

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   ─ Dormiste mal ou isso é só sorna? – Especado à sua frente o Nicolau empurrava-o com o joelho fazendo oscilar o banco em que se deitara.

   Abriu os olhos e, consternado, retrucou:

   ─ Não estava a dormir… pensava, imaginava, revia momentos de felicidade havidos e projectava-os no futuro…

   ─ Futuro… -- cortou o outro desdenhoso – grande futuro que nos espera…

   Contrariando-o, o que sonhava felicidade, insurgiu-se:

  ─ Não basta viver a vida, particularmente quando se trata da merda de vida que temos. É preciso sonhá-la para não darmos em doidos.

   -─ Tu lá sabes… Chega para lá.

   Sentados lado a lado no tosco banco aninhado na sombra que decrescia, fumaram em silêncio.

   Por fim, o que chegara, quis saber:

   ─ O que estavas a sonhar?

   A resposta tardou, cheia de reticências:

   ─ Era mais um imaginar que sonhar…

   ─Já sei… sonhavas com o filho…

   O movimento pendular da cabeça do questionado anunciou o longo silêncio que caiu entre os dois.

   - Casado e com um filho, esta porra torna-se bem pior… Se calhar fazes bem em sonhar…

   ─ E tu não sonhas, não imaginas o futuro fora deste inferno?

   ─ Para já, só penso na emboscada desta noite. Logo à tarde vou mentalizar os rapazes, verificar equipamentos… só água e balas, nada de tabaco… mas olha, também sonho com uma coisa…

   ─ Uma” zona de morte”[i] cheia deles? – interrompeu mordaz o dos sonhos.

   Levantando-se e sacudindo os calções coçados – gesto inútil – contemplou o amigo e contrapôs:

   ─ Não, pelo contrário: uma zona de morte vazia… vazia o tempo todo ─ Insistiu

   Abalou sisudo.

 

 

[i]  Zona de morte: Espaço físico em que se concentra o maior poder de fogo numa emboscada e onde é previsível que o IN sofra o maior número de baixas.

publicado por gatobranco às 11:48 | link do post | comentar